Estava já a escrever um novo texto (depois deste) sobre as razões por que a saída britânica me custa tanto pessoalmente. Afinal, pouco dormi esta noite.
Mas cansei-me, suspirei, e decidi fazer como os polícias depois dum acidente: vá, toca a avançar, já não há nada para ver.
Sim, eu sei: há muito para ver. O acidente ainda não acabou, o Reino Unido não sabe se perde peças ou não e a Europa não pára de bater com a cabeça na parede. Mas avancemos, sim, para já (logo vejo se volto ou não a esse rascunho).
Assim, este blogue dá um pulo e avança para onde sempre esteve: a falar de línguas.
Ora, muito bem: o inglês… Será que vai deixar de ser a língua mais usada nos corredores da União Europeia? Algumas pessoas tenderão a imaginar que sim. Ou talvez, a desejar que sim.
Mas não me parece. A União Europeia usa o inglês como língua de trabalho e os britânicos serão, provavelmente, aqueles que o usam de forma mais estranha: usam-no como língua nativa, quando o inglês da Europa já é um estranho inglês não nativo, simplificado, com expressões próprias, um verdadeiro instrumento de trabalho que terá poucas ligações à cultura de origem — e agora ainda menos. Sim, porque a importância do inglês nas instituições europeias terá pouco que ver com o peso político e económico do Reino Unido na União. Se assim fosse, os funcionários europeus conversariam em alemão.
Estou a falar do inglês falado nos corredores de Bruxelas. E quanto ao inglês das leis? A língua continuará a ser uma das línguas oficiais, claro está, pois é oficial na Irlanda e em Malta. Depois, nada indica que as versões inglesas da legislação europeia deixem de ter o peso que têm. Quem trabalha em tradução sente isso mesmo: tenho muitos trabalhos em que traduzo para português documentos sobre a União Europeia. Em que língua estão escritos esses documentos? Em inglês, claro. Quantos vêm do Reino Unido? Poucos.
Mais: no comércio entre europeus, o inglês continuará a ser muito usado. E na cultura, não me parece que voltemos aos tempos em que o francês era rei e senhor das conversas entre gente de países diferentes.
Nas conversas entre portugueses, alemães, franceses e até (pasme-se) espanhóis, a lingua franca continuará a ser, quase sempre, o inglês. Na ciência, o inglês mantém-se como língua internacional (até porque, nesse aspecto, a força da língua vem doutro lado). E podia continuar. Nisto das línguas, o Brexit vale muito pouco.
Como dizia a revista The Economist (e deixem-me lá citar um parágrafo em inglês):
All this makes for an odd result. Britain may be a polarising, unusual EU member, but English has become neutral, utilitarian; it is useful because others understand it. Its association with Britain is already weak and set to weaken if “Brexit” comes to pass. Dreamers have long hoped for a neutral auxiliary language that is common to all. Some have even gone to the trouble of inventing such languages. Who knows? English might one day fulfil the destiny intended for Esperanto.
Enfim, o Reino Unido sai, mas deixa a língua, que agora ficará nas mãos dos outros europeus. Como diz o artigo que citei acima, podemos estar a criar uma nova variante do inglês. Depois do inglês britânico, do inglês americano, do inglês indiano (e todos os outros), teremos o inglês europeu, uma língua falada apenas e só como língua segunda pela Europa fora. Uma espécie de latim dos tempos modernos. O mundo dá mesmo voltas muito curiosas.
Depois, há isto: não sabemos se daqui a uns anos não teremos, a juntar-se à Irlanda e a Malta, um terceiro Estado-membro de língua inglesa: a Escócia.
Esperam-nos dias interessantes. E digo isso de coração pesado.
ADENDA (28/06/2016)
No calor dos últimos dias, apareceram notícias em que alguns responsáveis europeus dizem que o inglês pode deixar de ser língua oficial das instituições, porque a Irlanda considera o irlandês como a sua língua a nível europeu e Malta não quer saber do inglês (apesar de ser uma das suas línguas).
Tudo muito certo, mas pensar que o inglês está em perigo é wishful thinking (perdoem-me o inglês). A Irlanda não comunicou que a sua língua oficial é o inglês porque o Reino Unido entrou na União no mesmo dia e a Irlanda preferiu, compreensivelmente, proteger o irlandês, que apesar de tudo só se tornou oficial no âmbito da União muitos anos depois. Os eurodeputados e funcionários irlandeses sempre usaram o inglês e isso não vai mudar. Em suma, se de facto a Irlanda nunca disse à União que o inglês é uma das suas línguas, foi porque não foi preciso — até agora.
Se vier a ser necessário, a Irlanda irá certamente comunicar que uma das suas línguas oficiais é o inglês (nem que seja porque alguns os seus eurodeputados não sabem irlandês). E se a Irlanda não o fizer, rapidamente os regulamentos internos das instituições serão alterados para que o inglês se mantenha como até aqui, porque afinal é uma língua usada, no dia-a-dia, por grande parte dos deputados, funcionários, etc.
Depois, quem sabe a centralidade do inglês na interpretação (como língua de relé, ou seja, de ponte entre línguas entre as quais não há intérpretes), na discussão informal nos corredores de Bruxelas, nos sistemas de memórias de tradução e de tradução automática (que Bruxelas usa desde os anos 50) — quem sabe tudo isto percebe que é muito improvável que o inglês perca a sua posição nas instituições europeias. Isto não é um desejo meu: é apenas uma análise da situação, que pode estar errada (mas não me parece).
Só para que fique claro: uma coisa é falar do inglês como língua oficial da União (são 24 línguas) — aqui não tenho dúvidas que o inglês continuará presente. Pois eu acrescento que o inglês como principal língua de trabalho (um estatuto que não é propriamente oficial, mas antes oficioso) também se irá manter. Mas, como em tudo, temos de esperar para ver.
A língua inglesa conquistou um estatuto que não necessitou de burocratas de outros países europeus, como a Bélgica, onde meia dúzia de pessoas fala em francês e outra meia dúzia ladra em flamengo, ou a Holanda, onde parece que falam da frente para trás, ou outros países cujas línguas, à excepção do honrado castelhano, são mais facilmente entendidas pela minha cadela Basset Hound do que por gente culta.
Se querem esta caricatura de continente transformado num canil, então, suprimam a língua inglesa dos textos europeus.
A Royal Canin agradecer-vos-à penhoradamente, imbecis!
Bem, lá por não percebermos as outras línguas não vale a pena insultar quem as fala. Sim, falamos todos línguas diferentes e o inglês tem essa honrada função de língua secundária, mas quem não fala inglês ou castelhano não é imbecil, obviamente.
Finalmente os inlgeses vão embora e podemos começar a falar em língua de gente
O inglês é língua de bicho? 🙂
Cruz credo!!
A coisa tá feia mesmo.
Talvez!
Isto é só um talvez.
Se por uma birra o inglês for descartado da UE, isso não será mais desagregador para a unidade da Europa do que a saída da Inglaterra do clube?
A Inglaterra é parte de uma ilha, o inglês nas múltiplas variantes é universal!
Isto é só um talvez. Mas quem sabe?