Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Como usar a língua para pensar melhor

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Imaginem que eu me armava em inventor de erros e vos dizia que «copo de água» é um erro. Que a única forma correcta é «copo com água».

Espero que se chegarmos a esse dia me atirem com um bom copo de água pela cabeça abaixo a ver se acordo para a vida.

Ora, mas se de facto me transformasse num desses seres sisudos sempre de dedo em riste a apontar para a língua dos outros, quase de certeza que iria dar uso a uma das estratégias mais irritantes dos puristas: logo depois de vos azucrinar o juízo com o copo que tem de ser com água, iria compor o ar mais sério que encontrasse e diria que ou bem que usam a expressão que eu prefiro — ou não sabem pensar. Porque a língua é pensamento e por isso se usamos uma expressão errada estamos a pensar mal. Quem não sabe que «copo com água» é a única forma correcta pensa mal. Ponto final.

Portanto: invento um erro, declaro que a língua é pensamento e depressa estou a defender que o futuro de Portugal depende do uso do «com» em «copo com água».

Estarei a exagerar? Não me parece. Ainda há pouco tempo ouvi um professor de filosofia a defender que não devemos dizer «isso é verdade!» e que tal construção é sintoma de profundas deficiências de pensamento por parte dos portugueses, coitadinhos. A forma correcta? «Isso é verdadeiro!» Sim, os puristas odeiam as palavras que saltam de classe gramatical. Gostam de ter tudo no sítio certo. Querem palavras domadas. Uma língua sonsa, por assim dizer.

Tenho de vos confessar: custa-me ouvir pessoas que põem o dedo em riste a dizer que usar bem a língua é essencial para pensar melhor — enquanto pensam tão mal sobre essa mesma língua.

Se de facto querem pensar bem — e todos nós queremos! — convém testar as nossas ideias (uma boa definição de pensamento crítico). Uma determinada construção da língua parece prejudicar o pensamento? Será mesmo assim? Em que casos concretos? Como é que, na prática, dizer «isso é verdade» nos impede de pensar melhor do que dizer «isso é verdadeiro»? E mesmo que encontrem um caso específico num texto, não haverá forma de corrigir o problema nesse texto em vez de exigir a toda uma comunidade linguística que mude um hábito tão inócuo como usar um substantivo com valor de adjectivo (coisa que os ingleses também fazem e não consta que tenham problemas filosóficos por aí além)?

Isto é um exemplo. Esta estratégia também se usa para justificar aquilo a que podemos chamar de «catastrofismo ingénuo»: ainda há poucos dias ouvi que os portugueses agora usam menos 20% de palavras (mas onde é que esta gente desencanta estes números, por amor da santinha?) e que isso é terrível porque — tchanam! — «língua é pensamento». Ora, nem os portugueses andam a usar menos palavras (que se saiba), nem o tamanho do vocabulário ajuda necessariamente a pensar melhor (ajuda ter muitas palavras, sim, mas saber usar aquelas palavras simples de todos os dias para explicar ideias difíceis também é um bom exercício de pensamento).

Temos de pensar bem e temos de falar bem — mas a ligação entre língua e pensamento não é simples. Posso ter um português impecável e pensar mal. Mais: a mudança na língua não implica necessariamente mudanças no pensamento. Os significados e as próprias palavras mudam muito mais do que querem os puristas e muito mais do que podemos controlar mesmo que quiséssemos. Nisto da língua, temos de aceitar esse facto imutável: as línguas mudam e são complexas. Às vezes até parecem ilógicas. O que há a fazer é estar atentos e tentar cavalgar esse animal selvagem que é a linguagem. Domá-la? Impossível. Para lá de que, domada, deixaria de servir para muito daquilo que nos sabe tão bem: a literatura, o amor, o humor…

Ideias práticas para pensar melhor

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A pensar na vida

Dito isto tudo, admito agora: a linguagem está mesmo ligada ao pensamento e escrever bem ajuda a pensar bem — tudo isto é verdade (ou verdadeiro, se preferirem). Mas escrever bem não é seguir esta ou aquela lista de manias linguísticas e pensar bem ainda menos.

(Já agora, fiquem com uma sugestão de leitura sobre a ligação entre língua e pensamento: The Language Hoax, the John McWhorther. De nada.)

Bem, não quero passar o artigo inteiro a reclamar. Aqui ficam algumas sugestões práticas sobre como usar a língua para pensar melhor:

  • Se tivermos uma ideia complexa na cabeça, tentar explicá-la a outra pessoa ajuda-nos a melhorá-la, a testá-la. Aliás, é nesse momento que surgem outras ideias e começamos a perceber o alcance do que pensamos. Por outro lado, às vezes estamos bêbados com aquilo que pensamos, completamente convencidos da nossa razão — e é no momento em que pomos a ideia em palavras que vemos como não tem pés para andar.
  • Escrever o que pensamos e tentar reescrever, explicar melhor, estruturar   o texto — isto ajuda-nos a pensar melhor. Reparem: não é esta ou aquela construção, esta ou aquela palavra: é o texto em si, a construção das frases, a ligação entre elas, a forma como dividimos os parágrafos. Ter o trabalho de resolver tudo isso limpa o pensamento — ou então mostra-nos que estamos com as ideias muito turvas e temos de parar para pensar melhor.
  • Pedir a alguém para ler para o que escrevemos: ou seja, pedir para que testem as nossas ideias. Muitas vezes, temos uma boa ideia na cabeça, mas não sabemos o que é óbvio ou o que não é, não percebemos se os outros percebem onde queremos chegar, não sabemos se essa ideia não será banal ou fora da realidade. E que serve uma boa ideia se não consegue sair do apertado espaço do nosso cérebro?
  • Já vos disse acima que me parece um pouco complicado pedir a todos os falantes que mudem esta ou aquela construção ou usem as palavras de forma bem comportada. Mas definir bem as palavras que usamos num ou outro texto é útil e aconselhável. Ajuda-nos a pensar melhor. Como? Dizer no início: «Neste texto, uso X com o significado Y.» Simples, não é?
  • Usar as palavras como alavanca. O que quero dizer com isto? As palavras são uma espécie de contentor onde podemos pôr ideias muito complexas, dando-lhes um nome, que podemos depois usar para pensar de forma ainda mais complexa. O nosso cérebro só consegue lidar com um número limitado de ideias de cada vez. Mas se conseguimos enfiar dentro duma só palavra um universo inteiro, podemos ter ideias cada vez mais complexas e subtis. O problema — e este é um problema bem real — é que às vezes usamos as palavras já sem perceber o que lá têm dentro. Mas fica para outro dia…
  • Ler muito. Claro. É uma espécie de mantra, mas vale a pena repeti-lo. No fundo, ler é usar as palavras dos outros para pensar melhor. E, depois, convém tentar usar as palavras contra nós próprios: fazer perguntas; fingir que não concordamos connosco e encontrar os melhores argumentos contrários; discutir dentro da nossa cabeça. Loucura? Não, não: o pensamento crítico não significa «atacar as ideias dos outros para proteger as nossas». Significa antes «desconfiar e atacar em primeiro lugar as ideias que nos são simpáticas». Temos de testar o que pensamos. É difícil, mas é importante.
  • E, por fim, se estamos sempre a repetir-nos, podemos tentar dizer a mesma coisa por outras palavras. É um bom exercício para perceber se estamos a cair num discurso que se basta a si próprio ou estamos mesmo a perceber as nossas próprias ideias. Porque importa dizer o melhor possível as ideias que temos, mas também é essencial ir melhorando essas ideias. A forma ajuda, mas o conteúdo é ainda mais importante. E por isso dizer o que queremos por outras palavras (ou até noutra língua) ajuda-nos a separar as ideias genuínas das palavras que dizemos só porque soam bem.

Escrever bem ajuda a pensar bem. Mas escrever bem não é seguir esta ou aquela regra de etiqueta linguística mais ou menos inventada. É muito mais complicado do que isso — e pensar bem é ainda mais complicado do que escrever bem.

(Bem, amanhã volto a falar das férias a ver se descontraio. Isto hoje foi pesado.)

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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