Este blogue já me trouxe algumas surpresas muito agradáveis. Uma delas foi esta: descobri Serge Lunin, tradutor e historiador ucraniano que se interessa muito pela língua portuguesa — e, no seu país, tem de viver algumas das questões que abordo por aqui de forma muito próxima e intensa. Desafiei-o a escrever um texto sobre o seu interesse pelo português e sobre como é viver num país com duas línguas. Aqui está o resultado, traduzido, a pedido de Serge Lunin, por Ivan Mestre. É um texto que fala dos sons do português aos ouvidos dum falante de russo, do bilinguismo por que Portugal já passou, da forma como as línguas podem estar ligadas a profundos conflitos nacionais… O texto original está no final, bem como uma pequena autobiografia do autor. [MN]
A língua portuguesa e eu
Serge Lunin
Traduzido por Ivan Mestre
O português entrou na minha vida por um mero acaso, após comprar um manual de português de 1963 para autodidatas a um alfarrabista. Na altura, o português europeu não era ensinado na União Soviética, e ainda faltava um ano para o golpe de Estado no Brasil. Por isso, ao referir a palavra “escada”, o autor ensinava a pronúncia “izcada”, e só numa nota mencionava que em Portugal se pronunciava como “escada”.
Após a Revolução dos Cravos a situação passou a ser a oposta. Obtive outro manual com a versão europeia, mas comprei ambos os livros já na Ucrânia independente, quando estudava na universidade e recebia uma bolsa de 5 dólares por mês. Na altura não podia permitir-me o luxo de ter Internet ou de viajar para a Europa. Na televisão passavam telenovelas brasileiras traduzidas, já sobre Portugal não sabia quase nada.
Sabia que precisava de fazer alguns esforços. Em Kharkov há uma grande biblioteca científica e lá encontrei um curso audiovisual de português de Antonio Fornazaro, composto por quatro cassetes e um manual. Pela primeira vez ouvi como falavam os portugueses: a sua forma de falar era surpreendentemente agradável. O português do Brasil agrada-me menos.
Em geral, as nossas línguas soam de forma muito semelhante, tal como muitas vezes afirmam as pessoas que não sabem nem russo nem português.
Desde então passaram muitos anos. Há muito que vejo as notícias da RTP ou TVI pela Internet. No ano passado ganhei o concurso de tradução amador “Por Outras Palavras” da Universidade de Lisboa, e finalmente falei com portugueses pessoalmente. Visitei Portugal, aluguei um apartamento em Lisboa e passeei nos seus arredores. Em Portugal está-se muito bem, e se pudesse, ficava muito mais que 9 dias.
O português também me foi útil quando decidi aprender francês, visto que ambas as línguas têm muito em comum. Agora estou a pensar no espanhol, embora já há muito tempo que consigo entender frases simples sem as traduzir (obviamente que nem todas).
Há um ano e meio chegou-me informação sobre uma página da história portuguesa, que por aqui ninguém conhece. Acontece que, em tempos, Portugal foi governado por reis espanhóis e nessa altura as pessoas instruídas falavam nas duas línguas (para além do latim). Comecei a pesquisar a questão ao ler a história da língua portuguesa em russo e ao consultar materiais na Internet em inglês. Mas só em português, espanhol e francês é que existem trabalhos detalhados sobre este tópico. Ainda bem que não me limitei ao inglês!
Na Internet encontrei artigos de Ana Isabel Buescu [http://www.fcsh.unl.pt/faculdade/docentes/aib] e outros especialistas (tive a sorte de poder falar com ela e com mais outros dois pessoalmente em Lisboa). De seguida li a tradução portuguesa do trabalho de Pilar Vázquez Cuesta, que é o único que explora esse tema. O livro foi-me enviado de Portugal por um amigo meu.
Eis o que descobri: o rei João IV publicou um livro em espanhol depois de ter subido ao trono e quando liderava a guerra de restauração da independência. O poeta Jerónimo Baía elogiava o seu filho, Afonso VI, pelas vitórias sobre os espanhóis… em espanhol. Nas peças de Gil Vicente e Pedro Salgado, uma das personagens falava em português, enquanto a outra respondia em espanhol…
Porque me interessei tanto por isto? Estas situações de bilinguismo são normais na Ucrânia. Falo em russo, mas posso mudar para o ucraniano quando é mais apropriado, visto que as duas línguas são tão semelhantes entre si como o português e o espanhol. Frequentemente na televisão ou em apresentações de livros as pessoas conversam nas duas línguas simultaneamente. Alguns dos escritores de expressão ucraniana mostram as personagens que falam russo de forma negativa, tal como o dramaturgo Simão Machado fazia.
Não duvido que alguns portugueses se possam rir de mim, dizendo que só noto tal semelhança porque vivo na Ucrânia. Para Portugal tudo isto são águas passadas, mas aqui está em jogo o bem-estar de muitos milhões. A guerra no Leste da Ucrânia já se prolonga há três anos. A minha cidade não foi muito afectada. Apenas uma vez ouvi disparos, e de outra vez houve a explosão de uma granada, mas as cidades mais a sul não têm tido tal sorte.
Em ambos os exércitos fala-se o russo frequentemente. A diferença reside no facto de que, no exército ucraniano, todos entendem ucraniano e muitos falam nesta língua. Entre os que vieram da Rússia para combater na nossa terra ninguém entende o ucraniano e alguns odeiam-no.
O conflito entre as duas línguas dura há 25 anos, desde a independência da Ucrânia. Agora tornou-se mais exacerbado, porque os que justificam a invasão por parte da Rússia com a defesa das pessoas de expressão russa (eu, por exemplo, sou uma delas) dão uma boa desculpa para os que odeiam a língua russa proporem leis que tornam a minha vida ainda mais difícil.
Todos os dias no Facebook e noutros sítios centenas de pessoas discutem acesamente o conflito linguístico. Infelizmente, na Ucrânia desconhecem a experiência dos outros países, em que existem problemas semelhantes. As emoções acabam por afastar qualquer desejo de estudar a história de outros países e procurar analogias.
É daí que surge a minha vontade de fazer alguma coisa para abrir os olhos das pessoas. Decidi fazer uma coletânea de autores da Península Ibérica sobre a situação linguística em Portugal nos séculos XV – XVIII, e já escrevi um artigo sobre o tema para o site Historians, onde publico artigos sobre a história da Ucrânia.
Eu próprio consigo traduzir do português para o russo e para o ucraniano. Do espanhol e do francês terei que procurar tradutores. As editoras ucranianas já demonstraram interesse no tema, mas se ninguém lhes der um subsídio, infelizmente, nada feito. Publicar livros não é nada fácil na Ucrânia.
Serge Lunin
«Vivo na cidade ucraniana de Kharkov (Carcóvia), onde nasci. Sou historiador e tradutor. Entre outros livros traduzi de inglês para russo The Gates of Europe: A History of Ukraine de Serhii Plokhy, professor de Harvard, que gostaria de recomendar a todos. Traduzi do ucraniano Vale Frio, memórias de um rebelde camponês (nacionalista) que guerreara contra os comunistas no ano 1920. Para tal, tive de restaurar o texto original que fora adulterado por várias pessoas. Compus também um comentário abrangente. No ano passado, publiquei um artigo sobre a primeira tradução ucraniana de Clarice Lispector. Comparando trechos do texto original da Hora da Estrela, de uma das traduções inglesas e da tradução russa (não muito boa), mostrei que o livro fora na verdade traduzido de russo. Como podem ver, gosto da história, das línguas estrangeiras e de chatear os outros.»
Португальский язык и я
Сергей Лунин
Португальский вошёл в мою жизнь случайно — я купил за полдоллара у букиниста самоучитель 1963 года. Европейский португальский в Советском Союзе тогда не преподавали, а до переворота в Бразилии оставался ещё год. Поэтому автор учил произношению «искада» и только в примечании упоминал, что в Португалии говорят «ишкада».
После Революции гвоздик всё стало ровно наоборот — у меня есть и другой советский учебник, рассчитанный на европейский вариант. Но купил эти книги я уже в независимой Украине, когда учился в университете и получал стипендию 5 долларов в месяц. Тогда я не мог позволить себе ни Интернет, ни поездки в Европу. По телевидению показывали бразильские сериалы в переводе, о Португалии же я не знал почти ничего.
Надо было приложить лишь немного усилий. В Харькове есть крупная научная библиотека и там нашёлся курс Антонию Форназару: четыре кассеты и учебник. Я впервые услышал, как говорят португальцы — их речь оказалась на удивление приятной на слух. Бразильский португальский мне нравится меньше.
Вообще, наши языки звучат очень похоже, как время от времени проговариваются люди, что не знают ни русского, ни португальского.
С тех пор прошло много лет. Я давно уже смотрю по Интернету новости RTP или TVI. В прошлом году победил в любительском конкурсе переводов Лиссабонского университета «Иными словами / Por outras palavras» и впервые поговорил с португальцами лично. В этом году впервые побывал в Португалии, снял квартиру в Лиссабоне, повидал и окрестности столицы. В Португалии очень хорошо, и если бы я мог, то оставался бы там не 9 дней, а намного дольше.
Пригодился мне португальский и когда я решил учить французский — нашлось много похожего. Теперь подумываю об испанском, хотя простые фразы по-испански давно уже могу понять и без перевода (конечно же, не все).
Полтора года назад мне попались сведения о странице португальской истории, которая здесь никому не известна. Оказалось, когда-то королями Португалии были испанские короли, а образованные люди писали на обоих языках (и ещё латыни). Я стал изучать этот вопрос: прочёл историю португальского языка на русском, посмотрел кое-что в сети по-английски. Но по-настоящему серьёзные труды есть только по-португальски, по-испански и по-французски. Как хорошо, что я не ограничился только английским языком!
В Интернете нашлись статьи Аны Изабел Буэшку и других учёных (с ней и ещё двумя мне повезло поговорить лично в Лиссабоне). Затем я прочёл в португальском переводе труд Пилар Васкес Куэсты — единственную книгу на эту тему. Мне прислал её друг из Португалии.
И вот что я узнал: Жуан IV издал фолиант по-испански, уже когда был королём и вёл войну за восстановление независимости. Поэт Жерониму Баия восхвалял его сына, Альфонса VI, за победы над испанцами — тоже по-испански. В пьесах Жила Висенте и Педру Салгаду один персонаж произносил реплику по-португальски, другой отвечал по-испански…
Почему это так меня увлекло? Такие ситуации — обычное дело в Украине. Я говорю по-русски, но могу перейти на украинский, когда это уместнее, ведь языки отличаются друг от друга так же, как испанский от португальского. Часто на телевидении или на презентации книги люди ведут беседу на обоих языках одновременно. Кое-кто из украиноязычных писателей делает отрицательных персонажей русскоязычными — подобно тому, как поступал драматург Симан Машаду.
Не сомневаюсь, что некоторые португальцы посмеются надо мной и скажут, что такое сходство я замечаю только потому, что живу в Украине. Для Португалии всё это — древняя история, но здесь на кону стоит благополучие многих миллионов. Уже три года на Востоке Украины идёт война. Мой город она затронула чуть-чуть — один раз я слышал выстрелы, один раз — взрыв гранаты. Городам южнее так не повезло.
В обеих армиях часто говорят по-русски. Отличие в том, что в рядах украинской армии все понимают украинский и многие говорят на нём. Среди тех, кто явился на нашу землю из России, украинский никто не понимает и кое-кто его ненавидит.
Конфликт между двумя языками длится все 25 лет независимости Украины. Теперь он обострился — ведь те, кто оправдывает вторжение из России защитой русскоязычных, вроде меня, дают хороший предлог ненавистникам русского языка предложить законы, которые сделают мою жизнь труднее.
Каждый день на Фейсбуке и в других местах сотни людей горячо спорят о языковом конфликте. К сожалению, опыт других стран, где есть подобные проблемы, в Украине почти не знают. Впрочем, эмоции отбивают желание разбираться в истории других стран и отыскивать аналогии.
Вот откуда желание сделать хоть что-нибудь, чтоб у людей открылись глаза. Я решил сделать сборник статей авторов с Пиренейского полуострова о языковой ситуации в Португалии в XV–XVIII веках. И написал уже блог на эту тему для сайта Historians, где публикую статьи по истории Украины.
С португальского и на русский, и на украинский я могу перевести сам, для испанского и французского найду переводчиков. Украинские издательства проявили интерес к моей идее, но если никто не даст им гранта, сборника, увы, не будет. Издавать книги в Украине — дело нелегкое.
Muito BOM, realmente!!!!
Muito interessante este artigo.Elucidativo e muito honroso para com Portugal.
Excelente ideia de Marco Neves em estabelecer este tipo de contacto.
Um outro livro que o autor pode achar interessante é:
Fernando Vasquez Corredoira, A Construção da língua portuguesa frente ao castelhano, 1998
Está esgotado mas para final de ano sairá uma edição muito aumentada e melhorada na Através Editora.
Obrigada por esta descoberta. Interessante. Tantas afinidades que se ignoram. O que é preciso, sempre, é curiosidade pelos outros.
Sair do nosso quintal estreito só nos enriquece.
Fantástico Marco Neves. Obrigado por esta partilha preciosa.
Talvez, alguém, devesse elucidar o autor que não existe “espanhol” como língua. Penso que ele quer referir o “castelhano”, esse sim, uma língua!
Quem usou “espanhol” foi o tradutor, não o autor. O tema já foi discutido várias vezes nesta página. Os dois glotónimos são usados em português há pelo menos dois séculos. Os alunos de secundário, por exemplo, têm aulas de “espanhol”. Pessoalmente, uso preferencialmente “castelhano”, para sublinhar a diversidade linguística de Espanha, mas o termo “espanhol” refere-se à mesma língua. Há mais línguas com dois ou mais glotónimos: catalão/valenciano (uma situação mais complexa), neerlandês/flamengo/holandês, etc. Note-se que há muitos outros estados com várias línguas onde uma delas ganhou o nome do Estado (basta pensar no francês).