«Lembro-me, há anos, de ter lido numa coluna de jornal que os portugueses estavam cada vez mais ignorantes porque agora se dizia por aí «terramoto», quando o correcto é, sempre foi e sempre será, até ao final dos tempos, «terremoto» — que os outros milhões de portugueses digam «terramoto» é apenas prova que os portugueses não percebem nada de português. Na mesma coluna, o autor dizia que Fernando Pessoa era mau poeta porque inventava palavras… Ainda hoje sinto calafrios ao lembrar-me de tal leitura.
O triste é que os puristas acabam por prejudicar a própria língua de que se julgam defensores. Nada há pior para quem escreve ou para quem está a começar a escrever do que imaginar gente de lápis vermelho na mão, a inventar regras à pressão só para poder criticar os usos e costumes da língua, acusando-nos de insanável ignorância apenas porque estamos a usar a nossa língua — isto enquanto ignoram olimpicamente o que quer que seja que estejamos a tentar dizer.
Para esta gente, mais vale estar calado do que cair num destes erros falsos que nos tentam impingir. A língua, para eles, é um daqueles copos de cristal que mantemos guardados num qualquer armário e nunca usamos para não estragar — ou só usamos debaixo de forte supervisão superior, não vá dar-se o caso de usarmos os gestos errados.
A língua não é sagrada: é bem humana, impura e ilógica — e ainda bem.»
Excerto de Doze Segredos da Língua Portuguesa, p. 140.
A versão inicial deste texto foi publicada neste blogue há um ano.
Caro Marco,
Escapa-me e parece-me mesmo incoerente que defenda, corretamente, a ideia de que a língua evolui, mas, ao mesmo tempo, se mantenha apegado à antiga ortografia. Nada há mais superficial na língua que a grafia das palavras, cujas mudanças refletem, não raramente, outras mais substanciais, não só, mas também de pronúncia.
Que motivo o leva a continuar a escrever conforme a norma anterior ao AO90, já que não é caturra como sói ser o típico antiacordista?
Deixo já claro que não me incomoda que o faça, mas ainda assim me parece incoerente.
Terei de pensar com vagar para tentar explicar esta incoerência. Fico, no entanto, contente que não o incomode. Afinal, nesta pequena batalha do AO que alguns transformam numa Guerra dos Mundos, é importante lermo-nos uns aos outros, sem ficarmos obcecados com a questão da ortografia que cada autor usa. E espero que volte, com esta ou outra ortografia!
Caro Marco,
Já pensou com vagar sobre a incoerência que lhe apontei?
Pergunto por genuína curiosidade em conhecer a sua resposta, pois, como já disse, que o faça segundo a antiga norma não me incomoda, como não me incomoda ler textos portugueses ou brasileiros anteriores às primeiras reformas.
Insisto apenas porque o apego à antiga norma num moço cuja visão da língua é tão arejada quanto a sua terá razões que se diferenciarão, certamente, das más razões que animam os antiacordistas mais ferrenhos: suposto fechamento das vogais átonas pré-tônicas, distanciamento do português das demais línguas românicas, cedências inaceitáveis dos donos da língua (os portugueses) àqueles que a usam por sua concessão (os brasileiros), cedência aos interesses espúrios dos grupos editoriais interessados em lucrar com a publicação de obras adaptadas à nova ortografia etc.
Note-se que os que preferem terramoto são, sim, uma gota no oceano que é a lusofonia, já que no Brasil, com mais de 200 milhões de habitantes, e acredito que não só nesse país, só se diz terremoto, nunca terramoto. Terremoto também é a única forma existente em espanhol e italiano. Também me parece mais condizente com o original latino, terraemotus, em que aparece terra no genitivo terrae, seguido do substantivo motus, ou seja, moto/movimento da terra.
Mas talvez não tenham razão os que dizem que sempre foi, é e sempre será terremoto. O meu Houaiss 2009, brasileiro, registra terramoto, diz que é pouco usado (claro, na perspectiva brasileira), mas data-o do século XIV! Informa que terremoto é de 1372. Se a informação estiver corretas, ambas as formas são antiquíssimas e surgiram no mesmo século.
Sim, é verdade que no Brasil a forma usada é “terremoto”. Mas em Portugal, actualmente, é raríssimo encontrar quem diga “terremoto”. Mas, como diz, isso pouco importa: as duas formas parecem ser antiquíssimas e legítimas, para lá das estatísticas do uso.