Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

A língua portuguesa e a roupa que vestimos

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Há pessoas que têm uma dificuldade imensa em lidar com a língua portuguesa toda. Em geral, gostam do português-padrão que se aprende nas aulas de português e se ouve nos discursos muito formais. Mas têm uma grande dificuldade em lidar com o português dos escritores, dos adolescentes, dos amigos, dos amantes, da terra onde nascemos, de certas ruas das cidades, o português dos insultos, dos palavrões, das profissões, dos dias bêbados. São pessoas que ficam nervosas com uma língua fora das estreitas margens que acham que devia ter. Têm medo que a língua se parta como se fosse um frágil cristal.

Estas pessoas não gostam que se diga «bué» (sabe-se lá por onde andou a palavra…), «o comer» (faz-lhes cócegas), que se diga «ok» (estrangeirismo imperdoável) — e há ainda quem imponha regras artificiais ao português, para ver se todos o usam de forma bem comportada (e cada vez mais limitada). São pessoas que gostam da ideia da língua portuguesa, mas têm um certo horror ao português tal como ele existe na boca dos portugueses.

Ora, aconselho a que desapertem a gravata e tirem a camisa das calças. O português que usamos é como a roupa que temos no corpo. Se formos a uma entrevista de emprego, temos de ir vestidos de forma minimamente formal e quem nos disser o contrário está a enganar-nos. Mas se formos à praia, um fato e gravata é mais do que errado: é ridículo.

Em casa, sabe bem vestir um pijama.

No trabalho, às vezes temos de usar roupa adequada para mexer nesta ou naquela máquina — ou para trabalhar num laboratório.

E há momentos em que uma lingerie não fica mal, não senhora.

Sim, aprender português não implica apenas aprender as apertadas regras do dialecto padrão, tal como aprender a vestir-nos bem não implica escolher um fato e usá-lo para todo o sempre. Convém conhecer todo um festival de diferentes roupas e combinações. Não é fácil, de facto, mas a vida seria tão mais cinzenta se todos nos vestíssemos de igual.

Mesmo entre quem percebe isto, há quem se limite a usar o que é adequado, há quem não faça ideia e erre sem querer, há quem não queira saber e use sempre a mesma coisa — e há ainda quem saiba dar um pequeno toque original à roupa que veste ou à língua que fala, mesmo quando vai para o trabalho.


Não sei se concordam comigo, mas parece-me errado gostar mais da ideia de roupa vazia do que da roupa à volta dum corpo de alguém, bem vivo.

Na língua é a mesma coisa — é errado pensar na língua sem os falantes, uma língua ideal, perfeita, nunca usada, guardada na gaveta ou nos livros de gramática. Perdoem-me, mas gosto mais de a ver usada no dia-a-dia, às vezes com uma ou outra nódoa, mas a servir as pessoas reais que a usam. (E às vezes também é bom ficar sem roupa, que o silêncio é de ouro em certas horas.)

Temos de conhecer cada vez melhor a língua toda, a língua usada nas várias situações, treiná-la como a um músculo para expressar as nossas ideias e fazer com ela o que queremos. Para isso, tal como na roupa, temos de saber as regras de etiqueta para que nos levem a sério. O português bem-vestido é muito importante: precisamos dessa roupagem formal para falar em situações formais, tal como precisamos da língua mais solta e mais livre quando precisamos de descansar e ir de férias.

Depois, não nos podemos esquecer que a roupa e a língua são úteis: agasalham-nos do frio ou são instrumento de comunicação. Mas são mais do que isso: com a roupa e também com a língua expressamos a nossa identidade. E, também pela roupa e pela língua, julgamos os outros de forma muito rápida e, às vezes, muito injusta. Será feio, mas será inevitável — somos um bicho complicado.

Vá, mas deixemo-nos de queixas: a roupa e a língua são também fonte de prazer, nos dias bons. Não são nada de sagrado: levamo-las bem chegadas ao corpo todo. Quando tudo corre bem, são confortáveis e deixam-nos bem-dispostos, por causa das cores ou do tecido, ou por causa da maneira como andamos e sorrimos.

Para que a roupa e a língua sejam mais fonte de prazer, tenho esta ideia muito estranha: podemos ser um pouco mais tolerantes para com a roupa que os outros vestem, um pouco mais criativos com a língua que falamos, um pouco mais abertos a experimentar e a aproveitar os dias de sol que aí vêm.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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14 comentários
  • Plenamente de acordo! Sou partidária do princípio “uma roupa para cada ocasião”. Boa analogia.

    • Talvez em França, ou na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos, ou na Alemanha, enfim, num daqueles países atrasados que usam o Ph.

  • Qualquer língua sem falantes, deixa de ter o vigor e a energia para se manter. A língua é o que queremos que ela seja. Ela nasceu, mas não se mantém estática e imutável. Podemos gostar, ou não, do uso que se lhe dá, mas como qualquer ser vivo cresce e modifica-se, numa infindável mutação. Mais um excelente apontamento deste bloguer.

  • Sim, concordo em grande parte e até julgo ser assim que procede a maioria das pessoas: adapta a linguagem ao momento. Não conheço essa gente do português padrão, mas acredito que haja, só que não me dou com padrões, é gente que me desinteressa. Prefiro a flexibilidade exploratória da língua portuguesa nos mais variados âmbitos.
    Mas não concordo, ainda que entenda o sentido, que a linguagem não seja sagrada. É sagrada, sim. Do mais sagrado que há. Mas, lá está, em mim o sagrado é aquele de Alberto Caeiro, rios e árvores, e casas e montes e pessoas e etc para quase tudo que existe. Um sagrado inacessível e intocável de pouco serve na sua fixidez de perfeição. A língua portuguesa é sagrada porque a respeito o quanto posso e nela me exprimo e espremo para quase tudo. Porque mesmo os silêncios só valem se são cheios de palavras e ideias, se significam. Ou serão vácuo. Por ser na linguagem que me encontro com o outro; ela é o mediador entre mim e ele; ou não há comunicação. Ora é na sacralidade da língua que o pensamento – criador ou não – se desenvolve; e haver linguagem coloquial, jovem, de dias de preguiça ou quando toca a rebate de arrelias e canseiras, que rebenta encrespada em vitupérios, não retira brilho. Antes a acrescenta. Ninguém sabe bem o que Pessoa queria dizer – convenço-me que nem ele mesmo, que os poetas se embrulham às vezes um bocadinho nas explicações que em meu entender não têm que dar – , mas sinto minha a frase dele, “A minha pátria é a língua portuguesa”. E alguém tê-lo dito por mim (e decerto por tanta gente) desta maneira é na verdade extraordinário.

  • Não. Uma língua não é como a roupa que trazemos no corpo. Não podemos fazer analogias de qualquer forma só porque não somos plenamente de acordo com alguma coisa usada no nosso dia-a-dia como se fosse um rótulo.
    Não. A língua não é como a roupa, nem a roupa como a língua. Tal como a roupa, a língua vai alterando, mas existem diferenças bem grandes. A roupa gasta-se rápido, e compra-se outra, ou simplesmente trocamos o guarda-roupa só porque somos vaidosos e não está na moda, com o argumento de que “já não me serve”. Eu sei. Já fiz isso. A roupa pode e deve variar mediante situações e muitas vezes imposições, mas que ninguém venha querer obrigar-me a por uma gravata só porque é um casamento, ou uma reunião de negócios!
    A língua altera-se mediante padrões gramáticos, não se altera porque é “fixe”! (ou será fiche? “anyeay”…) A língua, não é apenas uma identidade patriótica, “ok”? É um instrumento de bem maior à comunicação que deve ser usado correctamente, e sempre correctamente. Claro que podemos falar mais descontraídos algumas vezes, e com certeza entre amigos, família, e ou momentos mais descontraídos, ninguém se importará que eu seja “bué” louco, “táz’a’ver”! Logicamente não andarei perdido em palavrões a toda a hora que só servem “pra”, (adicionado no dicionário mais recentemente por mérito de uso, senão seria para), impressionar na entrevista de trabalho, ou conquistar uma “gaija” que queremos muito.
    A língua claro que vai-se alterando e adaptando ao longo dos tempos, e daqui a umas centenas de anos, com certeza será bem diferente escrita e falada, do que é hoje, da mesma forma que o era diferente à 600 anos atrás. O que não podemos ou devemos fazer, é alterações brutas e toscas como quem troca de cuecas. Existe uma forma correcta de falar e escrever a nossa língua, tal como todas as línguas têm a sua própria. Podemos e devemos ser mais descontraídos a falar, mas não devemos é alterar um código comunicativo como a língua, deitando ao lixo palavras e expressões que não gostamos ou compreendemos, tal como fazemos à roupa quando não a queremos.
    Não. A língua não é como a roupa. Não se lava, não se troca, e não se remenda. A língua constrói-se e repara-se gradualmente.

    • Obrigado pelo comentário. Comparo a língua à roupa para evidenciar alguns aspectos da linguagem humana. Usei uma metáfora. De qualquer forma, muito obrigado e espero que goste doutros textos do blogue.

    • Fiquei a pensar no seu comentário e acabo por compreender que entendeu a analogia de forma incorrecta: a língua não é como uma peça de roupa. As palavras e os textos, esses sim, são como peças de roupa e podem trocar-se, remendar-se, etc. Já a língua é como a roupa, entendida de forma genérica (“roupa” enquanto instituição social, se quiser).

      Por isso, sim, nos aspectos que refiro no texto, a língua é como a roupa: parece-me claro que a língua se deve adaptar a cada ocasião. Também me parece que, mais do que insistir no “certo e errado”, devemos aprender o que é adequado em cada situação: uma expressão pode estar certa numa situação e não ser adequada noutra situação. É mais complicado e difícil, é verdade, mas é assim que a linguagem humana funciona. Foi isso que tentei explicar no texto.

  • Convém lembrar que a língua serve para pensar, elaborar conceitos, tendo presente que não pensamos para além dela.
    Por isso, quanto maior o domínio da língua melhor pensamos.
    Por outro lado, não devemos confundir domínio da norma com pedantismo e informalidade com incorrecção.
    São ideias perigosas num país com baixa literacia e alta taxa de analfabetismo – a mais alta da Europa e comparável com alguns países do 3º mundo.

    • A língua serve para expressar o pensamento, mas pensamos para além da língua. Neste ponto, há um livro muito bom que explica bem a relação entre língua e pensamento, mais complexa do que muitas vezes se diz: The Language Instinct. E, sim, um bom domínio da língua ajuda a pensar melhor — tal como pensar melhor nos ajuda a falar e a escrever melhor. Quanto à norma, sim, é essencial numa sociedade como a nossa. Quanto à informalidade, o que tento sublinhar no texto é que a informalidade não é, necessariamente, incorrecção.
      Não me parece, assim, que as ideias do texto sejam perigosas: são uma forma mais saudável (espero) de pensar a língua, porque escrever bem é muito mais do que um ou outro pormenor e muito mais do que o domínio dum só registo de língua.

      • Compreendo a analogia que fez entre a Língua e o vestuário. Ambas são versateis , e distintas .
        Tal como temos vestuário muito formal e informal também tenos linguagens assim
        Ora, a Língua é um conjunto de signos e sinais que nos permite comunicar e como tal regida por regras para que haja U entendimento da mesma , o Que constitui a gramática . Estamos assim perante a Língua padrão .
        Contudo ela é falada por pessoas das mais variadas regiões de um país e das mais variados níveis sociais . Estamos perante actos de fala individuais ou de grupos de pessoas assumindo as mais diversas linguagens .
        As vertentes : linguagem popular
        Regionalismos
        Calão
        Linguagem literária
        Linguagem corrente

        Mas eu não sou capaz de pegar numa determinada linguagem e adaptá- la à zona para onde vou viajar ou ao grupo social com quem me vou encontrar. Cada um tem a sua linguagem perfeitamente assumida . Claro que como é um corpo vivo, sofre modificações ao logo da nossa vida . Assim, é que vai evoluindo uma Língua . Aparecem então os neoligismos- palavra nova . Por ex, há um neologismo ” massada” que já aparece nos livros de culinária, no nosso falar… Esta palavra não existia antigamente…

        Quanto ao vestuário, sim, eu posso mudar conforme quiser e adaptando- o ao espaço em que me encontrar . Com a Língua não .

  • A analogia dos diferentes registos com o vestuário para cada ocasião é muito boa e desenvolvida com agradável destreza. Ah, mas “o comer” é que não…

    Com vontade de cntinuar a ler!

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