Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

A língua portuguesa sem medo no calor do Alentejo

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Este fim-de-semana voltei ao Alentejo, não para falar do livro cujo nome hoje não direi, mas para ir refastelar-me nas festas da terra. Vim com uma irritante constipação e aquela impaciência das doenças leves.

Vendas de churros, tasquinhas da moda, espectáculos de artistas nacionais — neste caso, o Herman e o António Zambujo, que me preparo para ver enquanto escrevo estas linhas no telemóvel, para irritação de algumas pessoas que me olham com o ar estes-gajos-que-não-largam-o-telemóvel.

Há quem não goste destas festas, mas olhem que têm muito que ver.

Mas pronto. No meio disto, confesso: alentejano por casamento, não consigo habituar-me ao calor tremendo que me deixa a passar tardes deitado na penumbra o mais despido possível. Venho duma terra do litoral, com a brisa do mar sempre a amaciar os rigores do Verão.

Pois ainda esta tarde chegámos aos 44 graus. Fiquei deitado, a marinar no caldo quente que era o ar. Nem a sombra aliviava…

Agora à noite ando contente. As noites do Alentejo são quase perfeitas — e o «quase» tem a forma de melgas, pouco mais. E entretanto tento acompanhar algumas interessantes discussões linguísticas, muito por culpa de Fernando Venâncio, que nos vai picando com observações de linguista atento e divertido no Facebook, que se dá bem tanto no litoral como nos 40 graus do Alto Alentejo, pelo menos enquanto a bateria durar.

Pois, assim, com a cabeça constipada e cansado do calor, penso nos comentários que leio no Facebook e no medo que sinto em tantas pessoas genuinamente preocupadas com a língua que nos calhou em sorte.

O medo de já não haver norma, de valer tudo, de os jovens falarem uma língua deturpada… O medo de termos um português-padrão que já não tem força. O medo da anarquia linguística, será?

Estou aqui na festa, onde toda a terra está concentrada. Ouve-se muito português à nossa volta. Discute-se futebol, Brexit, etc. E miúdos a gritar, famílias a rir, o sabor do Verão ao pé do rio. O português que se ouve é material que dava para teses e teses de linguística.

Assim, de repente, o que oiço é uma tendência para os mais novos assumirem um sotaque muito mais lisboeta. Isto, inconscientemente. Os mais velhos conservam a entoação alentejana. Muda de família para família, de pessoa para pessoa. Nada disto se dá bem com certezas. Mas a tendência para termos um sotaque mais indistinto e para se usarem formas do português-padrão é clara (os mais velhos quase todos dizem «eles fizerem» quando a minha geração quase toda diz «eles fizeram», por exemplo).

Porquê? Porque temos a escola, a televisão, toda a força do português-padrão. Porque a minha geração foi para a universidade em massa (ou pelo menos para a escola secundária). Porque há mais misturas sociais e mais valor para todos em aprender a escrever e em escrever muito: e com a escrita vem o português-padrão. E outras razões que não vislumbro.

Estamos em transição, com dificuldades normais quando milhões aprendem um português bastante diferente do dos pais e avós. Em vez de catastrofismos, esta mudança profunda pediria espanto. E reconhecimento que a situação é complexa, varia de casa para casa.

Oiço mais um pouco. A coisa é ainda mais complexa: a mesma mulher que fala a dar para o lisboeta recupera formas mais alentejanas quando está com os pais ou quando está zangada. Na mesma mesa uma família fala em vários sotaques — querem eles saber disso? Não. Isto são manias de geek das línguas.

Mas o certo é que a tendência é para a uniformização, para um português mais parecido nas várias regiões e nas várias classes sociais.

Já nos meios onde sempre se falou português-padrão, onde quase todos vão para a faculdade há gerações, o que se ouve são os colegas dos filhos a falar sotaques aguados, mas que aos ouvidos destreinados das famílias que nunca passaram da Linha no que toca aos contactos sociais parecem o mais puro alentejano ou nortenho ou beirão. E, a estes ouvidos, são bárbaros estes sotaques. Virá daí uma confirmação da ideia falsa de que o português-padrão estaria a perder força.

Mas nem por sombras. O português-padrão tem andado por aí a apagar diferenças. Há 100 anos, fora de algumas ruas de algumas cidades, as diferenças seriam tremendas e ainda hoje se ouvem nas gerações mais velhas de muitas terras. Que alguns ainda se irritem com as diferenças que subsistem mostra a falta de contacto que havia antes. Quem vivia numa bolha descobriu agora que Portugal é maior do que parecia. Por isso parece-me que é importante defender isto: que se ofereçam os recursos necessários para todos dominarem o português escrito, e por conseguinte o português-padrão — mas também que se defenda uma visão menos platónica da língua, menos ligada a um ideal que tem muito de ilusório e muito de hábitos sociais que se confundem com correcção, e mais virada para a criatividade e força duma língua aberta a todos. E, sim, um português-padrão falado por milhões de portugueses e não por escassos milhares de pessoas educadas em exclusivas universidades será necessariamente mais flexível e menos puro — e com mudanças talvez mais rápidas.

Mas querem mesmo voltar para trás? E para que altura? Quando foi esse tempo em que os portugueses todos falavam como deve ser?

Ah, mas o português dos jornais? Ah, o que se publica por aí?

Percebo. Mas vem aí o Zambujo. Amanhã respondo.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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1 comentário
  • Caro Marco,

    Não me deveria manifestar sobre esse texto, pois não me concerne como brasileiro a força ou a fraqueza da norma-padrão em Portugal, mas me permito fazê-lo por admirar os falares do Norte, mais agradáveis aos meus ouvidos, quer pelo sotaque, quer pela conservação de formas que soam arcaicas aos ouvidos dos demais falantes do português, algumas das quais de uso corrente em uma ou outra região do Brasil.

    Se todos, das crianças aos idosos, dos camponeses aos juízes, falassem, em todas as situações, de Norte a Sul, conforme a norma-padrão, o português seria a língua mais pobre do mundo, a única sem dialetos, socioletos e idioletos. Os puristas, que nutrem esse desejo recendente a fascismo, não desconfiam de que são quem mais concorre para o empobrecimento da língua.

    Eu lastimo que se fale, em Portugal, cada vez mais como em Lisboa, e não porque desgoste do falar lisboeta, ou melhor, dos falares lisboetas, embora a eles prefira, sim, os do Norte, mas porque a homogeneidade é mutilante e tediosa.

    Não há, no Brasil, uma norma-padrão que se imponha ao país com a mesma força que a lisboeta se impõe a Portugal, por muito que cariocas e paulistanos tentem impingir aos demais as suas formas de falar. Ainda assim, a comunicação social, especialmente a Rede Globo, forjou um sotaque, à força de sessões de fonoaudiologia obrigatórias aos jornalistas, que tenta aparar as saliências denunciadoras de origem, sob a desculpa de que distrairiam os telespectadores do conteúdo das notícias. É a variedade a que se chama português do Jornal Nacional, principal telejornal da antedita emissora. Contudo, se é verdade que inicialmente se estranhariam os sotaques alheios, também o é que os ouvidos a eles se acostumariam e até os apreciariam, com o tempo.

    Eu, que sou mineiro e jamais falaria como um carioca ou um paulista, não porque não goste nem de um nem do outro, mas porque não sou nem um nem o outro, faço votos de que os portugueses do Norte não sucumbam à pressão da comunicação social e conservem as suas maneiras de falar, mas que as conservem permeáveis a trocas enriquecedoras, inclusive com Lisboa, sem subserviência nem receio.

    Um abraço,
    Rodrigo.

    P.S.: Gosto, principalmente, de saber que a segunda pessoa do plural ainda vive no Norte. Já li algures que não são só os idosos das menores vilas que se voseiam, como se pensa, mas também jovens com boa escolaridade e que vivem em cidades. É verdade?

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