Já lá vai um ano e uns bons meses, publiquei um artigo neste blogue chamado «O que é o tribalismo linguístico?»
Nesse artigo, falava das várias formas como as línguas servem para marcar a tribo, para separar a humanidade em grupos.
Mas hoje apetece-me ver o mesmo assunto noutra perspectiva. A língua é também um dos principais alicerces do sentido de comunidade que todos gostamos de ter.
Não precisa de ser uma comunidade nacional, diga-se, embora aí seja claro o valor da língua como cimento — tal como também é claro que, quando temos projectos nacionais diferentes num mesmo espaço, a língua rapidamente se transforma em campo de batalha. Deixem-me lá ver se me lembro dum Estado onde isto aconteça. Não estou a ver. Se calhar aqui pelas redondezas não há nenhum…
A língua da nossa terra
Pois bem. Olhando para Portugal, sabemos que a nossa língua é um dos pilares desse sentimento de comunidade nacional, que precisa dessas bases porque é sempre um pouco ilusório — pois cada comunidade nacional é atravessada por divisões profundas.
Por outras palavras: somos todos, em Portugal, muito diferentes uns dos outros (terras, clubes, partidos, temperamentos…), mas falamos todos português, o que sentimos como importante. Por isso, é um tema tão apaixonante e, de certa maneira, delicado.
Agora, também existe isto: as comunidades locais, regionais e sociais também têm as suas «línguas», os seus sotaques, os seus hábitos: e isto também é importante para esse bom sentimento de proximidade entre pessoas que falam da mesma maneira. Alguém que volte à sua terra gosta, normalmente, de se aproximar da forma como por lá se fala. É natural, é saudável.
Por outro lado, quando entramos em conflito com outra pessoa, é normal que a nossa linguagem se afaste da linguagem da outra pessoa. O caso extremo acontece quando, por exemplo, pessoas que se entendiam bem numa qualquer língua terceira exigem, a certa altura, a presença dum intérprete. Já me vi numa situação em que tive de servir de intérprete improvisado entre um grupo de portugueses e um grupo de belgas que, até então, tinham falado entre eles em inglês sem qualquer problema — até que um conflito os levou a todos a querer falar apenas português e flamengo. Foi-se a boa vontade, foi-se o inglês.
Assim, noutro plano, quando dois homens de duas terras bem portuguesas, mas distantes, falam em português-padrão e, a certa altura, se zangam, é vê-los a gritar no sotaque da terra de cada um.
Luxemburgueses, catalães, galegos e professores
Bem, agora volto a reler o texto que escrevi o ano passado: por lá, falo do Luxemburgo. Os luxemburgueses insistem no luxemburguês também porque permite ao pequeno país sentir-se como comunidade nacional.
Outro exemplo que dei na altura: um professor universitário que dá uma aula em inglês. Sim, está também a afirmar-se parte duma comunidade de académicos.
Mais um dos exemplos: os catalães querem que todos passem pela escola em catalão (mas sem deixar de aprender espanhol). Não, não é só para irritar madrilenos: serve para cimentar a comunidade catalã em redor da língua. E, sim, isso é coisa que, naturalmente, irrita muitos dos outros espanhóis.
Nem preciso de falar dos meus amigos galegos, onde a questão chega aos píncaros da complexidade (e eles lá têm de navegar esse mar todos os dias).
E ainda há quem goste de pensar tudo isto à bruta, como se um «ah, é assim como eu digo» resolvesse alguma coisa.
E o português dos emigrantes?
Lembro-me agora dos emigrantes: dos portugueses que andam por esse mundo fora.
O português será, no caso deles, uma forma de manter a ligação à comunidade de que todos fazemos parte, esse país pequeno que se entornou pelo mundo inteiro — mas também serve de desculpa para criar uma pequena comunidade de pessoas que falam a mesma língua no país onde estão, o que dá sempre jeito para viver melhor.
Que isto seja visto, em certos países, com alguma hostilidade por parte de algumas pessoas será natural — mas resolve-se se percebermos que não temos de fazer parte duma só comunidade!
Ah, já agora, fica aqui uma pequena nota: quem gosta de gozar com a forma de falar dos emigrantes, com as suas francesadas e palavras estranhas, lembre-se que eles têm mais línguas na boca do que nós, o que é muito melhor do que se imagina… E mais: não é que esses emigrantes que por vezes lá se descaem com umas infiltrações da outra língua na sua fala são, muitas vezes, dos portugueses que mais valor dão à língua? Para eles, não é um dado adquirido. Têm de a treinar e proteger todos os dias, com mais esforço do que se pensa. Vá, não sejam maus!
E, sim, os emigrantes podem continuar a sentir-se portugueses, a falar português, e, mesmo assim, exigir aos filhos que falem a língua do outro país perfeitamente. É bom que o façam. O português não se protege atacando as outras línguas: e acima de tudo não se protege atacando os interesses de cada falante em particular. O cérebro das crianças aguenta duas línguas (ou três)! E, se nós não existimos numa comunidade estanque e definida, a nossa língua não tem de ser só uma.
Ninguém gosta de ser obrigado
Somos membros de muitas comunidades. Ora, isso nem sempre é fácil. Sim, é verdade: temos o tribalismo cá dentro, a pedir-nos um mundo mais simples, menos confusões, menos misturas. Tudo descamba na necessidade de marcar a diferença e na desconfiança de quem fala doutra maneira.
Isto corre muito mal quando há quem tente impor unidades à força. Os portugueses falam do português sem conflitos porque ninguém nos anda — pelo menos nos dias de hoje — a obrigar a falar esta ou outra língua. Mas se querem mesmo espicaçar o diabo tribal que há em nós, podem sempre: criticar alguém por causa do seu sotaque; propor a substituição do português por outra língua; dizer que devíamos todos escrever de maneira exactamente igual aos outros países (ups!); e por aí fora.
Por isso, às vezes desconfio que a ideia de unidade acaba por ser muito perigosa: parece simpática, mas leva a muitos conflitos: afinal, se olharmos bem para um certo e determinado Estado de cujo nome agora não me quero lembrar, não será essa necessidade de impor uma língua a todo o território bem mais irrealista e forçada do que aqueles que apenas querem falar a sua língua (mas não se importam de aprender também a outra)? Nesse tal país, aqueles que só sabem uma língua queixam-se dos nacionalismos alheios — mas experimentem propor-lhes que aprendam as outras línguas espan… Ai, desculpem! As outras línguas lá desse Estado. Verão a resposta.
O valor da proximidade
Sim, o sentido de comunidade não se pode forçar. Mas podemos sublinhar a proximidade e é isso que digo sempre quando falamos do Brasil e da Galiza: estamos tão próximos! Podemos aproveitar, sem medo. Mas não temos de ir a correr dizer que somos todos isto ou aquilo.
Ah, mas sim: nisto da língua, sinto-me próximo dos galegos; sinto-me próximo dos brasileiros e dos outros falantes de português por esse mundo. Até me sinto próximo dos outros falantes de línguas latinas.
Se não gosto de unidades à força, também não gosto que se ande por aí a marcar distâncias também à força, com horror ao que é (ligeiramente) diferente.
Viver em várias línguas
Depois, há este espanto, que algumas pessoas, de alma monolingue, não entendem: podemos viver em várias línguas. Sim, às vezes lá se misturam, mas, vá, não sejamos drama queens. Os emigrantes podem falar inglês e francês e a língua lá do sítio — e podem manter o português o melhor que conseguirem. Isso é bom!
É possível ter várias línguas. É possível viver bem em várias comunidades. Não é fácil, atenção. Mas não é impossível. Por isso, gostava de vos dizer que respeito todos os que conseguem, bem ou mal, navegar estes mares inquietos da língua e da comunidade e do tribalismo — que são o anjo bom e o anjo mau da relação entre a língua e a identidade.
Sim, falo dos emigrantes, dos imigrantes e de todos nós que vivemos, em maior ou menor grau, em várias línguas ou em várias maneiras de falar a nossa língua.
Isto de ter mais do que uma maneira de falar faz parte de ser humano — e quem ainda sonha com mundos monolingues (de preferência, com um só sotaque e num só registo) não faz ideia do que anda a perder nem percebe assim tão bem o ser humano. Não é que alguém perceba, é verdade… Mas quanto mais línguas tivermos nos lábios, mais próximos ficamos de entender este bicho complicado.
Caro Marco: A sua postagem de hoje serve também para percebermos o que no extremo pode dentro duma mesma comunidade, servir de suporte a uma incapacidade total de Unidade entre um mesmo Povo.
Falo por exemplo do caso da República da Guiné-Bissau que com cerca de 1/3 de Portugal de área, tem uma diversidade de línguas que entre outros factores tem contribuído para criar enormes dificuldades, para a consolidação daquele território como nação una. Foi esta aliás uma luta extremamente percebida por Amílcar Cabral que bem tentou essa unidade linguista para facilitar o entendimento entre os diferentes povos daquela nação.
Só por curiosidade saiba-se que naquela nesga de terra existem povos com línguas distintas como o balanta, o papel, o fula, o mandjaco, o mandinga. Para agravar tudo isto existe ainda uma forte implantação do francês e alguma do português. Como língua transversal a todas estas existe ainda o crioulo que teve origem em grande parte no português arcaico.
A este povo tudo parece contribuir para os separar. Até as suas diferentes línguas. Que sublinhe-se para nosso mérito, sempre foram respeitadas pela colonização portuguesa.
Aqui está um assunto merecedor de um maior aprofundamento.
Há quem ponha a hipótese do Crioulo ter sido criado propositadamente para facilitar a comunicação entre Portugueses e outros povos. Possível?
Sim, parece-me que sim.
Pegando na explicação que os linguistas dão: os crioulos, em muitos locais, resultam da transformação de línguas de contacto (chamadas “pidgins”) em línguas verdadeiras. Ou seja, por exemplo, os portugueses chegavam a um local qualquer e, para comunicar com as populações, usavam uma língua simplificada e misturada (o tal pidgin). Esta língua acabava por ser transmitida às crianças da zona e, nesse momento, já era uma língua completa, com o nome técnico de crioulo. Isto é a explicação linguística simplificada do processo de criação dos crioulos.
Um dia destes ainda trago este assunto aqui para o blogue com mais vagar.
A propósito desta sua frase – «não é que esses emigrantes que por vezes lá se descaem com umas infiltrações da outra língua na sua fala são, muitas vezes, dos portugueses que mais valor dão à língua?» – deixe-me contar este episódio.
Nos anos sessenta um homem da minha aldeia emigrou para França (como milhares de outros, de todas as aldeias..).
Quando, em gozo de “vacanças”, voltou pela primeira vez a Portugal, foi o centro de todas as conversas lá no café.
Uma das muitas histórias que nos contou foi esta de quando, tendo ido almoçar com o patrão, aos aperitivos aconteceu que «– Eu a ver nitidamente que era queijo, e o gajo a ateimar que era fromage!»
Está a ver? Este é que dava valor à língua portuguesa.