Um livro ajuda-nos a aprender — isto parece óbvio. E isso acontece mesmo quando o livro fomos nós que o escrevemos… É o que dá ter excelentes leitores.
Conto-vos uma história. Há duas semanas, estive na FNAC do Vasco da Gama a conversar sobre os Doze Segredos. No final da sessão, um leitor que não conhecia, mas que me tinha feito uma pergunta inteligentíssima («Então, o que é um erro de português?»), veio ter comigo e disse-me, a sorrir:
— Só tenho uma crítica a fazer ao livro. Diz a certa altura, de forma absoluta, que a Terra anda à volta do Sol. Ora, é um pouco mais complicado do que isso.
Fiquei surpreendido e, não podendo conversar com um pouco mais de tempo, pedi-lhe para me mandar mais informações por e-mail.
E recebi a mensagem abaixo, que merece bem uma citação completa.
Caro Marco Neves,
Antes de mais, e agora por escrito, muitos parabéns pelo excelente livro.
No seu livro diz de forma muito “absoluta” que a Terra gira à volta do sol. Deixo-lhe aqui um texto do Bertrand Russell que explica que o movimento é relativo e daí que a questão se a Terra gira à volta do sol ou vice-versa não faz muito sentido. Uso o Bertrand Russell por duas razões, primeira, pela autoridade do autor e, segunda, porque ele explica o problema muito melhor do que eu alguma vez o faria.
Russell, Bertrand – “In this respect, it is interesting to contrast Einstein and Copernicus. Before Copernicus, people thought that the earth stood still and the heavens revolved around it once a day. Copernicus taught that “really” the earth rotates once a day, and the daily revolution of the sun and stars is only apparent. Galileo and Newton endorsed this view, and many things were thought to prove it – for example, the flattening of the poles, and the fact that the bodies are heavier there than at the equator. But in modern theory the question between Copernicus and his predecessors is merely one of convenience; all motion is relative, and there is no difference between the two statements: “the earth rotates once a day” and “the heavens revolve about the earth once a day.” The two mean exactly the same thing, just as it means the same thing if I say a certain length is six feet or two yards. Astronomy is easier if we take the sun as fixed than if we take the earth, just as accounts are easier in decimal coinage. But to say more for Copernicus is to assume absolute motion, which is a fiction. All motion is relative, and it is mere convention to take one body at rest. All such conventions are equally legitimate, though not all are equally convenient.” In ABC of relativity.
Não estou a querer ser picuinhas (ou assim o espero), e estar a levantar um problema com um pequeno detalhe no livro. A razão porque lhe falo nisto, e lhe enviei o texto acima, é porque vejo paralelos entre a relatividade do movimento e a da identificação de erros gramaticais. Em ambos os casos a resposta não é “preto no branco”, há nuances.
Se já sabia há algum tempo que o movimento era relativo, e se graças a livros com o seu sei que é difícil dizer o que está certo ou errado na forma como falamos, aposto que ainda há muitas situações que eu julgo de forma absoluta e que por certo são relativas.
Mais uma vez, foi um prazer ler o seu livro.
Um abraço,
Luís Borda de Água
P.S. Fico à espera do próximo livro!
Só tenho a agradecer! A língua portuguesa (e inglesa, neste caso) serve para isto mesmo: para conversarmos e para aprendermos uns com os outros.
E, sim, a língua não pode ser vista de maneira absoluta: tudo depende donde estamos, com quem estamos, o que queremos fazer naquele momento. Ao contrário do que algumas pessoas pensam, esta visão é mais exigente e, ao mesmo tempo, mais aberta a todas as possibilidades da língua e da vida. E não se trata de achar que a língua não tem regras: tem-nas e são ainda mais complexas e dinâmicas do que pensamos (há uns tempos escrevi sobre isso no artigo «Porque é que a língua atravessa a estrada?»).
Por outro lado, Russell também fala da conveniência (indesmentível) de calcular o movimento dos astros olhando para o sol como centro do sistema solar. Usar esta imagem para olhar para a língua continua a ajudar: a verdade é que a norma da língua é imensamente conveniente em muitos contextos (mas não em todos). Agora definir a norma é complicado: raramente é aquilo que cada um de nós gostaria que fosse. Mas sobre isso falaremos em breve…
Ah, mas uma coisa tem que ser deixada em “pratos limpos”: A sensação (ou a descrição) do movimento entre corpos celestes pode ser relativa, claro que sim, mas o “relógio” astronómico dos sistemas estrelares funciona na forma como a moderna ciência é ensinada:
Os planetas orbitam em torno das estrelas.
(ou, os corpos com menores massas, em torno dos corpos com mais massa)
Sabe-se sem a menor sombra de dúvidas que a gravidade é a lei suprema dos corpos celestes, pois até as galáxias têm como ‘regente gravitacional’ nos seus centros, um buraco negro que regula o equilíbrio de todos os sistemas solares e de estrelas solitárias que orbitam em seu torno.
Em última conclusão, eu acrescentaria ao texto deste artigo a seguinte consideração:
Enquanto que as línguas são invenções (umas casuais outras mais raras, intencionais) dos seres humanos, a mecânica celeste não teve qualquer influência ou vontade humana para existir, logo, enquanto que as línguas são produções imperfeitas e dadas às exceções, a mecânica celeste aplicada às estrelas e planetas, devido à sua imensa evolução e adaptação ao longo de milhões de milénios, segue regras rigorosamente restritas, ou não fosse o estudo da física a conclusão inegável de que as regras que regem o Universo são incrivelmente complexas mas ultra minuciosas e precisas quando estudadas ao pormenor.
Ou, o leitor que encontra erros na gramática pode (e deve) perdoar o autor porque se ali encontrou erro, é porque ali existe pegada humana, mas se encontra erro na mecânica celeste das estrelas e planetas, é bom que estude um pouco mais de física.
Muitos ainda hoje gostariam que a Terra fosse mesmo o centro do nosso sistema solar, mas provavelmente, tudo se deverá apenas à forma imperfeita como interpretam a posição dos seus umbigos quando comparada com o Sol que lhes parece viajar em torno dos mesmos.
Enfim, coisa óbvia de humanos.
Obrigado pelo excelente comentário 🙂