A nossa moeda chama-se «evro»?
Convido o leitor a fazer este exercício: pegue numa nota de 5 euros da segunda série (emitida ali por volta de 2013). Olhe para o nome da moeda:
Esconde-se aqui, muito sumida, uma velha guerra linguística. Mas, antes, note como o nome da moeda aparece nos três alfabetos usados na União Europeia: o alfabeto latino («EURO»), o alfabeto grego («ΕΥΡΩ») e o alfabeto cirílico («ЕВРО»).
O alfabeto cirílico tem a honra de aparecer na nota porque o búlgaro é uma das línguas oficiais da União. E é precisamente esta a língua que originou a tal guerra linguística.
Explico: por uma questão de uniformização, o nome da moeda escreve-se «euro» em todas as línguas europeias, mesmo que a palavra «Europa» comece doutra maneira. Por exemplo, em letão, o nome do continente é «Eiropa» — mas a moeda não é «eiro». É mesmo «euro», sempre assim, em todas as línguas. Isto também se aplica ao alfabeto grego, onde a transliteração é pacífica: «ευρώ» («euro»), que passa à forma maiúscula «ΕΥΡΩ».
Ora, os búlgaros chamam à Europa o seguinte: «Европа». No nosso alfabeto, a palavra búlgara é: «Evropa». Para um búlgaro, o que faz sentido é chamar à moeda «evro» («eвро») e não «euro».
O Banco Central Europeu e a Comissão Europeia insistiram que o nome búlgaro fosse igual ao nome da moeda em todas as outras línguas da União, mudando apenas o alfabeto: «еуро» (ou seja, em letras latinas, «euro»). Mas, não, os búlgaros bateram o pé: queriam uma moeda com um nome em búlgaro.
Ora, em 2007, em Lisboa, os governos europeus, reunidos, aceitaram por fim esta pequena ruga na uniformidade monetária europeia: o euro é «euro» em toda a União, excepto na Bulgária, onde é «evro».
Tantas línguas no nosso bolso
Avancemos. Pode não acreditar, mas o meu caríssimo leitor tem mais de vinte línguas no bolso. Repare, na sua nota de cinco euros, naquelas letras à esquerda:
Para poupar ao leitor o inclinar da cabeça, aqui fica a transcrição das letrinhas todas:
BCE ECB ЕЦБ EZB EKP ΕΚΤ EKB BĊE EBC
Temos aqui, em rápida sucessão, vinte e três das línguas oficiais da União. Falta uma, mas já lá chegaremos. Antes de mais, reparemos nisto: a União tenta dar a mesma dignidade oficial a todas as línguas oficiais. Ao mesmo tempo, convém poupar tinta. Assim, as línguas em que, por acaso, as três palavras «Banco Central Europeu» começam pelas mesmas letras partilham o espaço na nota. O terreno monetário é caro: não convém desperdiçar.
Ora, façamos uma pequena viagem pelas línguas que levamos no bolso…
- BCE — Estamos em primeiro lugar! Mas, no mesmíssimo local, temos todas as outras línguas latinas. Na verdade, a ordem segue a ordem oficial dos países, que se baseia na ordem alfabética dos nomes na respectiva língua oficial. Ora, a Bélgica está em primeiro lugar — e, por algum passe de magia protocolar, o francês avança à frente do neerlandês e do alemão, as outras línguas da Bélgica. E, com o francês, seguem as línguas latinas — em todas, o nome do banco é representado por esta sigla. Curiosamente, temos também aqui o irlandês, língua em que o nome do banco é «Banc Ceannais Eorpach».
- ECB — Agora, segue-se o neerlandês («Europese Centrale Bank»), mas também o checo, o dinamarquês, o inglês, o letão, o lituano, o esloveno, o eslovaco e o sueco. Perguntará o leitor: o esloveno e o eslovaco, com nomes tão próximos, serão línguas parecidas? Pelo exemplo, parece que sim: «Evropska centralna banka» (esloveno) e «Európska centrálna banka» (eslovaco). Mas não cheguemos a conclusões com três palavrinhas apenas…
- ЕЦБ — O búlgaro dá-nos aqui o único cheiro de letras que não sabemos pronunciar. A segunda letra é, habitualmente, transliterada como «c» (e lê-se «ts») e a última como «b». Transformando no nosso alfabeto, teríamos algo como «ECB». Ou seja, a sigla anterior.
- EZB — Chegámos à língua que mais cidadãos europeus têm como materna: o alemão. A sigla representa duas palavras: «Europäische Zentralbank».
- EKP — Aqui, temos duas línguas próximas, mas isoladas de todas as outras: o finlandês («Euroopan keskuspankki») e o estónio («Euroopa Keskpank»). São dois exemplos desse bicho raro: línguas europeias que não têm uma origem indo-europeia comum. Outros exemplos serão o húngaro e o basco.
- ΕΚΤ — Não parece, mas esta sigla está noutro alfabeto: o grego. O nome do banco, por lá, é este: «Ευρωπαϊκή Κεντρική Τράπεζα». O leitor perdoará que não faça a transliteração. Afinal, o significado é óbvio…
- EKB — Outra das línguas não indo-europeias: o belo húngaro. Aqui temos a expressão completa: «Európai Központi Bank».
- BĊE — Não fosse o pontinho por cima do «C» e o maltês iria directamente para o grupo das línguas latinas e do irlandês, ali logo à entrada. Mas, não, a sigla certa é mesmo «BĊE». O som que esta letra representa é o «tch». Curiosamente, o maltês não tem a letra «C» sem ponto. Não estranhemos assim tanto: o nosso «i» também tem sempre uma pinta. Em maltês, para lá do «i», também o «ċ» é sempre pintado…
- EBC — A última língua é o polaco: «Europejski Bank Centralny».
Disse que faltava uma língua… Se quiser encontrá-la, pegue numa nota de 50 euros:
Conte as siglas. São 10 — enquanto, na nota de 5, são apenas nove. O que se passou? Bem, entre a emissão da segunda série das notas de 5, 10 e 20 euros e a emissão da nota de 50, entrou um novo país na União Europeia: a Croácia.
Assim, ali entre o grego e o húngaro, lá temos o croata, língua em que o banco se chama «Europska središnja bank». No meio, temos aquele «š» a chamar-nos para mais aventuras pelas estranhas letras das outras línguas.
Uma língua em falta
A União Europeia faz este esforço louvável de tentar dar a mesma dignidade às línguas dos seus cidadãos: do maltês ao inglês, estão ali todas, por ordem alfabética do nome dos respectivos países. Os tratados e a legislação também são publicados nas vinte e quatro línguas oficiais.
Todas? Bem, aqui mesmo ao lado, temos uma língua muito europeia — já se falava por cá ainda os indo-europeus mal sabiam onde era a Europa — que não aparece nas notas.
Falo do basco.
Espanha informou a União Europeia que a sua língua oficial é o espanhol. No entanto, aqui no reino do lado, há uns quantos milhões de europeus que têm outras línguas maternas, para lá do castelhano. Ora, enquanto os galegos e catalães podem olhar para as notas e ver ali as suas siglas na posição comum das línguas latinas, os bascos não encontram o seu idioma no dinheiro que usam. Em sua honra, deixo aqui o nome do banco em basco: «Europako Banku Zentrala».
E assim fizemos uma viagem à volta do nosso bolso…
(Este artigo foi republicado no livro Palavras que o Português Deu ao Mundo: Viagens por Sete Mares e 80 Línguas.)
Eskerrik asko, Marco, bene-benetan gizon dotorea zaitugu.
Obrigado, Marco, realmente és uma joia.
Mais um texto EXCELENTE! Parabéns
Parabéns, Marco Neves, mais uma vez. Acabei de passar os dedos nas notas de euro que me sobraram da última viagem a Portugal. Fiquei triste. Uma de 5; uma de 20 e uma de 50. Não dá nem para comprar um livro seu… Abração.