Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

A literatura, o haxixe, as virgens, a Seita dos Assassinos, os terroristas e mais umas quantas coisas

Ainda há quem diga que a literatura não serve para nada. Gostava de vos recomendar um livro que mostra como a literatura pode servir até para percebermos a embrulhada terrorista em que estamos metidos.

Agora, peço-vos alguma paciência: vou ter de passar por guerreiros que fumam haxixe, campos de treino de virgens do Paraíso, jogos de computador que me trazem velhas recordações e mais umas quantas coisas.

Comecemos pelo livro. Uma obra da mais pujante literatura europeia: a literatura eslovena! Não entendam nesta ironia qualquer tipo de desprezo pelas obras em esloveno. Afinal, em todas as línguas podem surgir obras-primas e cá estamos nós, tradutores, para as tornar acessíveis ao mundo inteiro.

ALAMUT GRANDEPois bem, a obra de que falo é Alamut, de Vladimir Bartol, publicada em 1938. Reparem, por favor, no ano. Lembrem-se das aulas de História. Pensem nessa década e em tudo o que estava a fervilhar por essa Europa fora. É importante perceber isto para perceber o livro, apesar de o livro nada parecer ter a ver com a Europa e seus desaguisados.

A história de Alamut é intrigante: Hassan-i Sabbah, um líder ismaelita, cria uma seita de combatentes temíveis, concentrados em Alamut, uma fortaleza persa na mítica Rota da Seda.

Os guerreiros dessa seita são crentes fervorosos, a arder por dentro na certeza de lutarem por Deus e na esperança duma vida eterna com as famosas virgens do Paraíso.

Para espicaçar o fervor e eliminar qualquer resquício de dúvida, Hassan-i Sabbah cria um harém verdadeiro, com raparigas treinadas para a satisfação absoluta dos guerreiros.

A certa altura, o líder finge que transporta os guerreiros ao Paraíso, onde estes se deleitam com as virgens, provando assim, em vida, os deleites da Eternidade a que acederão se forem valentes na guerra.

Imagem medieval da legendária fortaleza de Alamut.

E o haxixe? — pergunta o leitor mais impaciente. Ora, porque a força da certeza absoluta nem sempre é suficiente, os guerreiros fumavam haxixe, que os deixava mais maleáveis e felizes, enquanto matavam os inimigos e sonhavam com os corpos perfeitos daquelas mulheres eternamente jovens e disponíveis. As virgens reais e bem treinadas são, assim, garantia de que os guerreiros morrem felizes, convencidos que irão estar nos braços das suas amadas em poucos segundos, tudo bem cozinhado no cheiro intenso do haxixe.

Qual era o nome desta seita? Seita dos Hashashins (fumadores de haxixe), ou seja, a Seita dos Assassinos.

Exacto: a palavra «assassino» tem origem no nome dessa seita e deriva de haxixe. Esta seita, por sua vez, inspirou Bartol na escrita da sua obra-prima, que por sua vez foi traduzida para o francês e do francês para o português, até me chegar às mãos numa edição de tabacaria há vários anos, publicada em conjunto com o Público.

Escusado será dizer que o autor pretendia dar-nos uma aventura poderosa, com fortalezas perdidas na Rota da Seda, rica de combates e amores — mas também estava a criticar a mentalidade totalitária que, nesses anos 30, assombrava a Europa. A literatura é assim: deixa-nos o sangue aos saltos e ainda consegue ajudar-nos a ver o mundo doutra maneira.

Ora, curiosamente, este livro deu origem a uma série de jogos de computador: Assassin’s Creed.

Ainda vos hei-de contar as complicadas discussões que às vezes tenho com o meu irmão Diogo sobre a relação entre a literatura e os jogos. A arte e a vida são tramadas, nada dadas a fronteiras fáceis.

Bem, se nunca joguei Assassin’s Creed, joguei um outro jogo, que me traz belas recordações de infância e que também se passa na Pérsia. Falo do Prince of Persia. Lembram-se?

PRINCE


Mas vem isto tudo a propósito de quê? Podia vir a propósito de nada. Escrever sobre livros e jogos e tudo o resto devia bastar-se.

Mas Alamut vai mais longe: ajuda-nos a destrinçar a história bem enovelada das várias correntes do ismaelismo, que é parte do xiismo, que é parte do Islão. Compreender é algo que podemos sempre tentar, por mais complicado que nos pareça o mundo.

Deixem-me dizer-vos ainda que este livro nos ajuda a perceber uma coisa que nos pode, hoje em dia, ser muito útil: como funciona a cabeça do mais temível dos terroristas, aquele que não tem medo da morte.

O terrorista é alguém de espantosa e inabalável fé. Está convencido que Deus odeia os infiéis — e os fiéis são poucos: apenas os mais puros.

O terrorista está convencido que a empatia que, ainda assim, sente pelos infiéis é sinal de fraqueza, que tem de combater. O bom terrorista mata 200 crianças. O mau terrorista hesita. O terrorista que se preza mata em si a fraqueza de sentir os outros como humanos, parecidos consigo. O que interessa é Deus e a pureza da fé.

O terrorista sabe também que é forte nessa sua pureza. E que o seu desejo, as suas fraquezas carnais não são nada perante a força de quem mata. Assim, pode violar e usar sem problemas as mulheres e raparigas infiéis. Na Eternidade, terá as virgens ao seu serviço; aqui, neste mundo, tem os corpos sem valor das infiéis.

O terrorista é feliz. Tem a vida eterna à sua frente. Tem o amor de quem lhe interessa: de Deus, da família, dos amigos. É puro e fiel. Nada mais interessa (e a opinião do mundo dos infiéis não interessa mesmo nada). A tribo, o sangue, o sexo — tudo isto ajuda o terrorista a matar.

Como combater isto? Não sei!

Agora, reparem: um escritor esloveno usa uma seita xiita para explicar o nazismo e o estalinismo; hoje em dia, podemos usar esses totalitarismos europeus para explicar o wahhbismo, como fiz há dias.

No fundo, andamos todos à volta deste problema, há séculos e séculos: o radicalismo cego, cheio de fúria e ardor, de que nos temos libertado com dificuldade e com muitas recaídas. Pessoalmente, acho que a melhor palavra para o descrever é mesmo totalitarismo, que pode ser religioso, político, nacionalista e não é exclusivo de nenhuma região do mundo.

Agora, se quiserem, o dirty secret do terrorismo, tão bem descrito em Alamut. Um dirty secret que o Estado Islâmico conhece como poucos: o terrorismo é sexy. Aliás, o totalitarismo é sexy. O nazismo era sexy (perguntem à Riefenstahl). O totalitarismo é sexy, claro, para os que estão na sua esfera de influência: os alemães comuns dos anos 30, que queriam certezas e um bode espiatório no corpo dos judeus; sexy para alguns muçulmanos, que querem um mundo medieval com Alá no céu, o imã na Terra e as virgens prometidas no fim da explosão; sexy, há alguns séculos, para os cruzados, que eram os nossos terroristas muito cá de casa; sexy para os anarquistas do final do século XIX. O totalitarismo/terrorismo é sexy porque é simples, é imediato, ferve-nos o sangue e traz-nos o olhar apaixonado de algumas pessoas (que bastam). O terrorismo é sexy como o rufar dos tambores para a guerra. Não é nada sexy para as suas vítimas, mas essas nada valem aos olhos destes crentes.

Espero que compreendam o que quero dizer: estou longíssimo de estar a fazer qualquer tipo de apologia do terrorismo ou do totalitarismo. Antes pelo contrário. Quero apenas encarar o bicho de frente.

Não vale a pena negar: o Estado Islâmico é atraente para muitos jovens, fartos de ambiguidades e complicações. Querem o rufar dos tambores, a certeza da vida eterna e um pouco de excitação (e escravas sexuais) no entretanto.

Tudo isto está ali, nessa obra estupenda. Alamut. Aventuras, enredos magníficos e tudo aquilo que nos arrepia e assusta. No fim, compreendemos melhor o mundo e aquilo que nos espera nas próximas décadas.

E ainda há quem diga que a literatura não serve para nada.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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7 comentários
  • O texto é interessante (algo já habitual no blog em questão) e indica-me para a leitura do referido livro (está lá para casa na mesma versão do Público).

    Referir apenas ‘terrorista’ em vez de ‘terrorista muçulmano’ é um erro!

    Já havia terroristas antes desta onda actual de terrorismo muçulmano. E não tenho dúvidas que mais virão, com e sem qualquer associação com religião.

    Refiro apenas um caso. Durante a guerra colonial (se este comentário for lido por alguém das ex-colónias portuguesas, agradeço que esse alguém leia ‘guerra da libertação’ em vez de ‘guerra colonial’), os adversários dos Portugueses eram apelidados por estes de “Turras” (diminuitivo ‘carinhoso’ de Terroristas).

    • E não nos esqueçamos de que Eça já andava a escrever sobre o terrorismo na Europa nos anos 1890. Nessa altura eram os anarquistas franceses, que cativavam toda a intelligentsia de França (algumas coisas nunca mudam), para espanto de Eça.

  • A origem da palavra «assassino» é disputada e nem todos os historiadores e linguistas interessados neste assunto concordam que derive de «hashashin».

    À parte essa questão, o «Samarcanda», de Amin Maalouf, também fala da história desta seita. É um livro fabuloso.

Certas Palavras

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Marco Neves

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