Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

O dia em que roubei um livro na minha própria livraria

Uma livraria arejada e moderna é uma coisa linda de se ver — e então uma livraria assim, luminosa, naquela rua a cheirar a café e a gente bonita, era o meu sonho de há tantos anos que não resisti a comprar aquela promessa de felicidade com uns dinheiros que recebera duma tia sem nome.

E foi uma promessa cumprida. Durante uns dias, remodelei aquilo tudo com a ajuda da Sónia, que no dia em que ali entrei como dono me deu o primeiro beijo da nossa vida. Foi ela que escolheu o sofá onde os clientes se recostavam por baixo da estante dos livros ingleses, a ler contentes no cheiro bom da melhor livraria de Lisboa — sem desconfiar do que ali se passava, naquele mesmo sofá, quando as portas se fechavam e nos atirávamos para outra felicidade difícil de encontrar nas páginas dum livro.

Ela gostava dessa sensação de estar a namorar com o dono duma livraria, de poder ficar lá dentro depois da hora de fecho, as luzes ligadas à nossa maneira, sentados no sofá a ler, saciados entre livros caídos. À noite, aquele paraíso era só nosso.

Depois de jantar, ela ia para casa e eu ficava por lá, a tratar das encomendas e das facturas, com as preocupações habituais de quem compra e vende e tem contas para pagar, mas com o sorriso nos olhos de quem tinha o sofá e, na pele, o sabor da boca duma mulher bonita.

Um dia, chegou a primeira carta do banco. Escondi tudo da Sónia, que por mais umas semanas continuou a peregrinar ao nosso santuário, onde nos beijávamos por baixo dos livros ingleses. E depois veio a segunda carta, os telefonemas, o cartão Multibanco rejeitado nas lojas, as estantes que começaram a ficar vazias, os clientes a rarear, o gerente do banco a tratar-me por você depois de meses de tu-cá-tu-lá.

Procurei nos livros que lá tinha, mas não encontrei em nenhuma página essa sensação ácida e pesada, como o sabor da boca ao acordar de ressaca, essa sensação de fraqueza, de desistência, de estar sentado no sofá entre facturas vencidas e extractos negativos — não há livro que descreva como é ter medo do correio, como é estremecer à vista do símbolo das finanças, não há livro que contenha o peso das cartas que trazem lá dentro vozes de funcionários carrancudos com ameaças de processos, multas e pregos nas costas. E, sim, não há livro que mostre como é passar noites a sonhar com números azedos no ecrã do Multibanco e como, de manhã, acordamos de novo para ir trabalhar e, no fim do mês, recebemos como ordenado mais uns quantos euros negativos estampados nos papéis do banco.

A Sónia descobriu, claro, e prometeu ficar e ajudar-me, mas nunca mais nos sentámos no sofá — e, semanas depois, entrava descontraída pela porta, sem se lembrar de mim nem de tudo o que ali fizera. A livraria já pertencia a outro.

Esperei, à esquina. Deixei-a sair, pouco depois. Sem vergonha, entrei eu mesmo na livraria, que estava igual, mas com outro nome e, por trás da registadora, outro homem ainda entusiasmado. Olhei-o como se o tivesse encontrado na cama com a Sónia e ele sorriu apenas e perguntou-me se estava à procura de algum livro em particular. Eu parto-te os dentes, pensei eu, e respondi que não, estava só a ver.

Sentei-me no sofá, passando a mão nos vincos que só eu sabia como eram indecentes.

Olhei para o rapaz, distraído a olhar para a registadora. Peguei num livro de mansinho — e levei-o comigo.

Sim: roubei um livro à minha própria livraria. Eu, que sempre odiei os gajos de óculos que não dizem palavrões, mas roubam livros, como se rebentar com as contas dum honesto dono de livraria fosse obrigação moral do bom intelectual; eu, que sempre fui atrás deles e lhes tirei o livro da mão e enfrentei o desprezo dos olhos daqueles que achavam indecente e próprio de brutos a minha vontade de não ser roubado — pois eu roubei um livro e senti uma felicidade absurda, como se aquilo resolvesse tudo, como se a livraria fosse minha outra vez, como se mais logo, ao fim da tarde, lá estivesse eu atrás do balcão, à espera da hora de fechar, a olhar para a Sónia e a sorrir, enquanto ela mordia o lábio e fingia folhear um livro, a desejar que o último cliente nos desamparasse a loja e por fim pudéssemos saltar para cima do sofá, sob o olhar discreto das estantes.

Um carro apitou, olhei em volta e percebi que estava sozinho com um livro na mão.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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1 comentário
  • Nunca roubei um livro numa livraria.
    Não é porque não tivesse vontade de o fazer mas, como acho que sou um bocado azarento, nunca e atrevi a tal.
    Limitei-me a roubar um ou outro nas bibliotecas dos meus tios, Eram relativamente grandes e depois, eu contava às minhas tias que, por não terem filhos, gostavam muito de mim e estava tudo resolvido.
    Hoje, todos esses entes queridos desapareceram. Eu também não espero ficar por cá muito mais tempo.
    Curiosamente, surgiu-me agora uma vontade grande de roubar livros. Mas só me apetece roubá-los ao Estado: Torre do Tombo, Biblioteca Nacional, etc.
    Sabe, fiquei tão farto dos políticos, das Finanças, da Direcção Geral de Contribuições e Impostos e de todas essas criaturas, que só me apetece vingar-me. Conhece algum remédio que me possa ajudar?
    Peço-lhe imensa desculpa pelo tempo que lhe tomo.

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Marco Neves

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