Uma das minhas memórias mais antigas é a de ter três ou quatro anos de idade e andar pela casa a brincar e, meia volta, parar para contemplar os livros que os meus pais tinham nas estantes lá de casa. Não sabia ainda ler e lembro-me que isso me afligia. Afligia-me olhar para aqueles volumes de papel e não ter maneira de conhecer as aventuras mágicas que tais volumes imponentes e majestosos necessariamente continham. Claro que ouvia histórias antes de dormir, como qualquer criança, mas não era a mesma coisa. A serenidade, a intemporalidade e o profundo mistério daqueles objectos de papel era quase avassaladora. Trinta anos depois, ainda é.
Não me posso gabar de façanhas extraordinárias ao nível da leitura quando era criança. Não li o Ulisses aos nove anos de idade nem coleccionei volumes do Borges aos doze. Só desenvolvi um gosto real pela leitura mais tarde, por volta dos quinze ou dezasseis. Foi A Queda dum Anjo, de Camilo, o livro que me convenceu. Primeiro convenceu-me porque era uma novela, assumindo eu que, por ser um livro pequeno, seria fácil de ler. Não era: tive de recorrer ao dicionário com frequência. Convenceu-me também por ser efectivamente uma boa história, com um arco narrativo que dá à personagem de Calisto Elói um carácter marcadamente português mas também universal e intemporal, além de apresentar todo um pitoresco ambiente do século XIX do nosso país (mais tarde viria Eça com o seu Padre Amaro, ainda mais incisivo e hilariante). Convenceu-me, acima de tudo, porque quando o terminei pareceu-me que tinha valido a pena gastar aquelas horas “só” a ler um livro.
Tendo disto isto, houve outro aspecto que me fascinou neste livro, e que já vinha da infância: o próprio objecto. O cheiro e a textura das folhas, a magia de haver ali gente e histórias dentro. Trata-se de uma edição do Círculo de Leitores de 1978 adquirida pelos meus pais e que hoje reside na minha pequena biblioteca. As palavras ainda estão todas lá, tal como as personagens, as histórias e as nuances satíricas. As folhas retêm exactamente o mesmo cheiro, aquele cheiro persistente a livro velho.
A propósito, há dias sondava a minha colecção de livros intento em perceber qual o volume com a edição mais antiga. A vitória clara foi de um pequeno livro que comprei numa feira de antiguidades há alguns anos: Novo Methodo Pratico Para Aprender a Ler, Escrever e Fallar a Lingua Ingleza, editado em 1895, portanto há duas ou três ortografias atrás. Segundo o Google, o autor, Jacob Bensabat, escreveu diversos livros de autodidáctica das línguas, curiosamente alguns dos quais ainda hoje se encontram em impressão com o texto actualizado. Folhear este livro é delicioso, especialmente para quem gosta de línguas e de livros em simultâneo.
Tudo isto é literalmente prova física da “magia” diacrónica e do carácter persistente do livro-objecto, pelo menos para quem nasceu na era pré-ebook. Não tenho nada contra os ebooks, bem pelo contrário: são uma evolução natural para a leitura e têm vantagens claras ao nível da portabilidade, flexibilidade, preço, etc. Além disso, em nada prejudicam quem não lhes dá preferência. Um ebook não tem, porém, o carácter romântico-tradicional do livro de papel, por mais incontornáveis que sejam as suas vantagens. E para quem gosta realmente de livros e não só de ler, esse carácter é decisivo. Os livros tradicionais, feitos de papel, serão sempre objectos de grande valor histórico, cultural, pessoal e, por vezes, até monetário. O próprio objecto é quase comparável a uma obra de arte (em alguns casos, é mesmo). E isto é especialmente verdade para os livros velhos, mas também para os antigos. Se forem velhos e antigos, ainda melhor, porque nos fazem viajar no tempo duas vezes.
Gostei muito da tua crónica. Ainda que veja algumas vantagens nos ebooks, o objeto livro é de facto insubstituível 🙂