LIVROS NA BAGAGEM. Capítulo 4.
Ora, e não é que vou ter de adiar, mais uma vez, a história da voz do metro de Londres? Estas viagens sem plano são assim. Aliás, plano até tenho: não tenho é paciência para o seguir à risca.
Ora, apeteceu-me assim contar-vos hoje como fiquei a conhecer Londres ao passear na Andaluzia. São os milagres dos livros.
Ora, deixem-me então contar-vos a história de Londres ali perdida em Huelva.
Os meus pais sempre gostaram muito de passear de carro — e fiquei-lhes com esse bichinho. A primeira viagem de que me lembro foi ao longínquo Algarve, quando tinha uns três anos. Para lá chegar, tínhamos de passar por estradas infindáveis. Demorávamos, desde Peniche, umas boas cinco horas. Com alguma sorte…
Ficámos num apartamento emprestado, de que recordo algumas imagens muito vagas (e um pinhal à frente) e uma viagem de barco a Ayamonte, onde comprei uma grua de brincar… Banalíssimo, mas para mim tem qualquer coisa de história antiga, pois são das minhas primeiras memórias — afinal, era mais novo do que o meu filho é agora…
As únicas memórias que tenho mais antigas que essa viagem são de estar na cadeira de bebé a olhar para uma máquina de lavar roupa na cozinha da primeira casa dos meus pais; de estar na Estefânia com uns três anos a entrar para o bloco operatório — nada de minimamente grave, já agora, mas para um miúdo de três anos estar rodeado de médicos é coisa para nunca mais se esquecer — e ainda uma viagem a uma casa gigantesca em Birre — sei que é em Birre por investigações que fiz muito depois; talvez vos conte um dia destes.
Pois bem. Não me lembro assim tão bem, mas sei que, antes e depois dessa viagem ao Algarve, percorremos Portugal de cima a baixo. Julgo que fomos a todos os distritos — pelo menos, eu andava de mapa, sentado lá atrás, sempre a apontar as paragens. Era a Volta a Portugal em quatro rodas. Mas dessas voltas não me lembro tão bem como das voltas da adolescência, por já ter nessa altura um pouco mais de idade — e livros na mão. E, como já vimos, pouco haverá melhor para nos lembrarmos dos sítios onde vamos do que os livros que levamos connosco.
Portugal já estava despachado — digamos assim — e, assim, na minha adolescência, acabámos por passear muito por Espanha, todos os Verões, o que me levou a ter uma inclinação muito grande para gostar do(s) nosso(s) país(es) vizinho(s). Fica feito o aviso: pais portugueses, se não quereis ter filhos com estranhos gostos de travo hispânico, quando chegarem a Vilar Formoso, toca de não parar até chegar a França. Ou então usem o avião.
Mas isso agora não interessa, porque hei-de vos falar dessas voltas espanholas mais tarde. Agora o que interessa é que, nos Anos 90 as vidas portuguesas andavam a melhorar (sim, estamos a falar dum passado distante). E, assim, não era descabido dar voltas de carro por Espanha e passar uns dias no Algarve noutra altura do ano. Ou até misturar as duas coisas.
Pois então, lá para os meus 14 ou 15 anos, estávamos nós no Algarve e os meus pais decidem ir dar uma volta a Espanha. As fronteiras estavam abertas, já havia ponte sobre o Guadiana, e fomos até Huelva. Por lá passeámos, até que tivemos de ir comprar alguma coisa para comer e fomos a um supermercado.
Ora, lá pelas terras do Sul os supermercados costumam ter alguns livros ingleses à venda. Eu já gostava muito de ler e andava com vontade de ler em inglês. Porquê? Porque não só lia, como ainda tinha o sabor exótico duma outra língua a passar-me nos lábios.
Se tinha inglês suficiente para ler como deve ser era coisa que não me interessava. Acabei por comprar este calhamaço:
… e foi um prazer olhar para as palavras inglesas, ainda com sabor exótico para a minha mente adolescente, e ir entrando pelo texto dentro, calmamente, com o dedo indicador, como se estivesse a aprender a ler outra vez.
Várias vezes li aquele primeiro parágrafo, e fui investigar o que era o Michaelmas Term, o que era o Lincoln’s Inn Hall, e por aí fora. Aprendi muito inglês só com estas primeiras linhas.
Leiam, leiam, porque só estes dois parágrafos são deliciosos. Nunca mais me esqueci do Megalosaurus nem do «Fog everywhere»…
Aqui têm, em todo o esplendor, a Londres de Dickens, com nevoeiro a perpassar pelas palavras e pelas ruas… Um nevoeiro que imaginei enquanto voltava de carro para o apartamento de férias, no esplendor do sol andaluz.
Na minha geografia pessoal, a Londres de Dickens, cheia de lama e escuridão muito literária, tem qualquer coisa do sol do sul de Espanha.
Já agora: amanhã, se o trabalho me deixar, conto-vos como Oxford, para mim, tem qualquer coisa de espanhol. As cidades e os livros, todos à mistura, têm destes segredos muito pessoais.