Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

O maior problema da língua portuguesa é este!

Reparem nesta crítica assassina ao português dum cartaz afixado num qualquer hospital deste país:

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Ora bem, admito que a frase possa ser considerada um pouco infeliz, pois permite uma leitura ambígua em mentes mais distraídas. É, no entanto, uma ambiguidade improvável: haverá assim tantas pessoas que interpretem o aviso como se este indicasse que os doentes têm de ser diabéticos e estar internados para terem prioridade? Não creio.

Repito: admito que a frase é infeliz. Mas um «os» antes de «diabéticos» resolvia o problema.

Agora, uma demonstração de iliteracia?

Reparem: são os doentes internados e [os] diabéticos que têm prioridade. Mais: se fosse preciso dizer que só os internados que sejam simultaneamente diabéticos têm prioridade, o aviso seria diferente: «os doentes diabéticos que estejam internados» ou «os doentes diabéticos internados…». Por muito que custe a alguns, as palavras «E» e «OU», nas línguas naturais, têm um comportamento mais complexo do que os operadores lógicos com os mesmos nomes. Não confundam estas palavras com os símbolos que usamos na notação lógica. Estão relacionados, mas são diferentes.

Enfim, a discussão é interessante, mas mesmo se acharmos a frase infeliz, será que merecia o insulto? O queixoso não fez por menos: dispara contra os professores, contra o governo, contra todos nós, que somos burros. Pelos vistos, isto é um exemplo acabado da iliteracia que existe em Portugal.

Bem, já que estamos numa de reclamar de forma empolada, cá vai disto: digo-vos que a imagem acima é um exemplo do desconhecimento sobre linguística que ninguém expulsa deste país! Só que não é o cartaz, é mesmo a reclamação… Antes de mais, a palavra «iliteracia» não é  aplicável — nem de perto nem de longe — a quem escreveu este aviso (há ali uma certa tendência para evitar artigos e usar maiúsculas, mas iliteracia?). Depois, a queixa demonstra claramente uma falta de sentido das proporções. A frase mereceria um sorriso, talvez… No máximo, uma pequena recomendação simpática ao autor do cartaz, para evitar ambiguidades futuras: «olhe, não sei se reparou, mas falta ali um artigo». Mas acusações hiperbólicas deste tipo? Um insulto a todos os portugueses por não saberem escrever? Quando é que este pensamento empolado e errado é expulso do nosso país? Vá, é só ir deixá-lo em Ayamonte!

Bem, vou deixar o registo empolado de lado. Deixei-me levar. Peço perdão. Sublinho apenas que esta retórica se alimenta da vontade imensa que algumas pessoas têm de mostrar à força que defendem o português. Como não sabem bem como, caem nestas tontices. Imagino que, por trás destes discursos assarapantados, exista uma grande insegurança.

Alguns podem agora dizer-me: «Vá, não exageres! É um caso de alguém que estava maldisposto nesse dia…» Sim, mas vejo textos destes todos os dias. Todos os dias leio discursos inflamados sobre a língua. O perigo disto? Ora, a indignação gasta-se. Pensem em problemas verdadeiros: um formulário que ninguém entende ou ambiguidades realmente perigosas ou sentenças que os interessados não conseguem interpretar nem que a sua vida dependa disso… Quando há casos destes, que são erros sérios de português, deixamos de ter forma de os criticar, pois gastámos as palavras e a indignação em parvoíces. Quem distingue as críticas justas das injustas se estamos inundados destes discursos?

E mais: esta forma empolada de falar da língua deixa algumas pessoas mais inseguras no seu uso do português. Afasta da escrita uma ou outra pessoa menos motivada. Serve para criar irritações e desviar-nos a atenção das questões mais importantes. Deixa nalguns espíritos a impressão que isto é que é discutir a língua, que isto é que é defender o português.

Ler, escrever, reler, rever — usar a língua de forma generosa e honesta: isso não vale de nada, se somos insultados desta forma porque nos esquecemos dum artigo num cartaz — ou usámos a conjunção «e» correctamente…

suit-673697_1920Mais ainda: se formos por aqui, deixa de haver critério na avaliação que fazemos dos textos que lemos. Se é possível dizer isto deste cartaz, qualquer pessoa pode dizer o pior possível de qualquer texto. Basta inventar. É o facilitismo crítico no seu auge.

Vá, vou continuar a pagar na mesma moeda e puxar de mais uma hipérbole: estes exageros de português são o maior problema que a nossa língua tem. A ignorância das regras da norma-padrão resolve-se com algum esforço. Esta atitude já não sei.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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2 comentários
  • O maior problema é a psique colectiva portuguesa que faz com nós portugueses sejamos os maires denegridores de Portugal ou das coisas portuguesas.

    Mas ái de um qualquer estrangeiro que diga que o pão de mafra é a coisa mais odiosa à face da terra. Só não lhe batemos porque está longe…

    Nota) nada me move contra o “pão de mafra” 😉

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