Viajar é tão bom, que até gosto das viagens dos meus amigos.
A minha amiga Ana Chainho passou os últimos dias nas Maldivas, o que me parece um sítio muito original para passar estes dias antes do Natal.
Decidi chateá-la um bocado (está de férias, pode aturar os amigos…) e pedir-lhe para tirar fotos às placas e inscrições na língua do país para partilhar convosco, pacientes leitores deste blogue de línguas.
Assim, posso trazer-vos hoje um pequeno cheirinho à língua que se fala nesse paraíso perdido no meio do Índico.
Antes de vos mostrar o resultado, reparem nas primeiras fotos que ela me mandou:
Perante isto, a primeira reacção de qualquer pessoa minimamente saudável será: «Eu quero lá saber da língua que se fala aí.»
Percebo perfeitamente! Mas já que não podemos ir todos para as Maldivas (até porque aquilo era capaz de afundar sob o peso de dez milhões de portugueses), podemos sempre aprender alguma coisa.
Mas, pronto, só mais uma foto da praia (não resisto):
Agora que já babámos todos com a paisagem, falemos de línguas (e, pronto, lá se foram 80% dos leitores deste artigo).
Como qualquer lugar de turismo, a Ana encontrou por lá línguas de todo o mundo. Basta olhar para os livros espalhados pelo hotel:
Parece haver por lá muito turista israelita e uns tantos coreanos…
Diz-me a Ana que também viu muita coisa em russo — e, claro, em inglês.
O divehi
Mas a língua do país é outra, claro: o divehi ou, se quiserem, maldivense.
Aqui vão os nomes da Ana, do Telmo e do filho nessa língua do Índico:
Que alfabeto é este? É o thaana.
Thaana: uma estranha forma de escrita
Digam lá se o nome do sistema de escrita desta língua não lembra um povo qualquer duma galáxia muito, muito distante? Está ali muito perto do Klingon, não está? «Eis se não quando encontrámos o povo do planeta Kor, que escrevia em Thaana!»
Mas, não: é mesmo o nome do alfabeto desta língua tão simpática (porque tão paradisíaca).
Fiquem com o primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos:
Transliteração:
Hurihaa insaanun ves ufanvanee, dharaja’aa’i ḥa’quthakuga’i minivankamaa’i hamahamakan libigenvaa ba’e’ge gothuga’eve. Emeehunnash heyo visnumaa’i, heyo bu’dheege baaru libigenva’ava. Adhi emeehan ekaku anekakaa medhu mu˂aamalaath kuranvaanee, ukhu’vaththeri kamuge rooḥe’ga’ava.
Podem encontrar mais pormenores por aqui. É um sistema de escrita da direita para a esquerda, em que os sons vocálicos são assinalados por símbolos e não por letras.
Fiquem com mais duas fotos que a Ana me arranjou:
Uma palavra maldivense: «atol» (e mais uma prova que a língua portuguesa gosta de vadiar pelo mundo)
Curiosamente, temos uma palavra que vem desta língua (mas através do inglês): «atol».
Depois, como não podia deixar de ser já que o nosso povo é um vadio, lá aparecem umas palavras portuguesas na língua. Assim, a palavra para «mesa», em divehi, é «mēzu» e a palavra para «lança» é «lonsi» — duas palavras de origem portuguesa.
A língua das Maldivas é prima da língua portuguesa?
Agora, a grande surpresa: a relação entre a nossa língua e o maldivano (sim, este nome também existe) é mais profunda. Apesar do aspecto exótico e do cenário paradisíaco, o divehi é primo afastado da nossa mui nobre língua portuguesa.
Não sei se já pensaram nisto, mas as línguas também têm famílias. O português é uma língua latina, mas todas as línguas latinas são parte de uma família mais abrangente. Como sabemos, o inglês é uma língua germânica, o russo é uma língua eslava — e todas estas são línguas indo-europeias. Há uma relação entre elas, descoberta no século XIX.
Fiquem com o mapa das línguas indo-europeias na Europa e na Ásia:
Ora, o divehi faz parte do grupo indo-ariano das línguas indo-europeias, sendo aparentado com o cingalês, que se fala no Sri Lanka (podem ver a cor azul no mapa acima nessa ilha a que já chamámos Ceilão).
Por isso, sim, é verdade: o português está mais próximo do divehi, falado nessas ilhas paradisíacas do Índico, do que do basco ou do húngaro.
É possível vermos, com os nossos olhos, essa relação? Sim, se tivéssemos tempo e interesse para estudar as línguas a fundo. Há vocabulário actual que descende das mesmas palavras e há estruturas que são comuns a toda esta grande família.
Por exemplo, de forma muito simples: os verbos, nas línguas indo-europeias, costumam concordar com o sujeito. Isso aplica-se ao português, ao inglês, ao russo, ao divehi e por aí fora.
Já no basco, por exemplo, os verbos também concordam com os complementos. Ou seja, não podemos aprender os verbos sabendo apenas as tabelas do «eu canto», «tu cantas», «ele canta», etc. Os verbos também mudam de acordo com aquilo que nós cantamos…
Viajar tem destas coisas: podemos descobrir mais sobre o mundo e sobre nós próprios — não é curioso perceber que, no que toca à estrutura das línguas, temos mais a ver com a língua das Maldivas do que com o basco, mesmo aqui ao lado?
E, reparem, até nem precisamos de ser nós a viajar: podem muito bem ser os nossos amigos.
(Embora, claro, fosse muito bom estarmos a falar disto à beira do oceano, sob o sol quente das Maldivas…)
As línguas falam quem somos onde estamos o quê fazemos e para onde estamos indo.
As línguas revelam nossos ancestrais, o que eles falaram,fizeram e quais os legados que nos deixaram, pelo menos a partir do momento em que eles começaram a registrar seus atos.
Estava planejando ir a Malé ,porém não sei falar em divehi
Brilhante, como sempre!
E falando em Ásia, para quando o seu olhar sobre o Kristang , língua ainda falada na Malásia? 🙂
Fica o “teaser”: “Nus komesah lisang nubu amiang!” Tradução: “Nós vamos começar uma lição nova amanhã”, link de um projecto brilhante que luta para preservar esta língua >> https://www.facebook.com/kodrahkristang/
Texto muito bem escrito e divertido. Parabéns ao autor. Sou brasileira e estarei viajando agora em janeiro para as Maldivas. Adorei!