Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

O dia em que os ingleses descobriram o Algarve

As memórias são estranhas. Às vezes, basta o cheiro de um bolo para nos recordar os dias da infância. No meu caso, foi um pouco mais complicado: meteu ingleses à bulha no Algarve — e no fim, ia morrendo. Eu conto.

O prazer das livrarias

Tudo aconteceu em Cambridge, há uns anos, numa das viagens em que fui visitar o meu irmão Diogo, que anda por terras britânicas há 10 anos.

Antes disso… Se quero contar a história como deve ser, tenho de ir ao início. Ora, o início, neste caso, é o prazer que sempre senti ao entrar numa livraria. Não será fácil de explicar, mas não é coisa de agora. Este prazer é ainda mais intenso quando estou de viagem. Parece que a livraria é o meu porto seguro, um porto onde posso abastecer-me desses bens preciosos que são os livros.

Ora, a Inglaterra é uma perdição no que toca às livrarias. Tropeçamos numa a cada esquina, a abarrotar de livros de todo o tamanho e feitio… Sou como uma criança, a percorrer os dedos pelas lombadas, a pegar neste, a folhear aquele, a deixar-me seduzir por aqueloutro.

Os livros são perigosos

Ah, o dia estava a correr bem. Andávamos todos pelas agradáveis ruas de Cambridge a viver aqueles momentos em família. Quando digo todos, digo muita gente: a minha mulher, o meu filho, o meu irmão, a mulher dele, a filha deles e os meus pais.

Mas a história ia acabando mal… E a culpa é do meu vício de não passar muito tempo sem querer enfiar-me numa livraria.

Prometendo não demorar muito, deixei-os a passear e entrei num alfarrabista.

Entrei e respirei fundo (grande erro!). Pus-me a percorrer os corredores, a sentir o cheiro das páginas antigas.

Pois, a certa altura, os meus olhos repousaram num título perigosamente sedutor. É quase impossível a um português ver este título sem querer, pelo menos, ler uma ou duas páginas: They Went To Portugal. É o título de um livro de Rose Macaulay, publicado em 1946, sobre os viajantes ingleses em Portugal. No meio de tantos títulos ingleses, o nome do nosso país chama-nos irresistivelmente.

Peguei no volume. Comecei a ler. Enquanto a minha família andava pelas ruas de Cambridge, deixei-me levar pelo relato dos cruzados ingleses que ajudaram a conquistarLisboa aos Mouros, um relato cheio de sabores e cheiros e algum humor. As palavras de Macaulay baseavam-se no famosíssimo relato de Osberno (que, provavelmente, não se chamava Osberno, mas isso agora não interessa nada).

Fui folheando, mal sabendo o que me iria acontecer.

Ingleses à solta no Algarve

Deixei os minutos passar e as páginas a voar. Cheguei ao relato do cerco de Silves de 1189, durante o reinado de Sancho I.

Silves aparecia como uma cidade paradisíaca, branca ao sol, repleta de jardins e belos templos, encimada por um castelo inexpugnável.

Sorri ao ler como a autora descrevia os desentendimentos entre ingleses e portugueses no Algarve: uns acusavam os outros de crueldade, enquanto estes diziam que os primeiros não faziam o esforço suficiente para derrotar o inimigo. Muitos séculos depois, quando uma menina desapareceu por aquelas bandas, ainda os ingleses e portugueses andavam às turras em termos não muito diferentes: uns eram pais cruéis, outros polícias que demoravam muito tempo a almoçar.

Adiante.

O cerco foi terrível e a vitória tipicamente violenta, o que desagradou ao rei português, que não queria tratar assim tão mal os seus novíssimos súbditos. Os cruzados ingleses — e de outras nações — não sentiam tais pruridos. Deixaram sair quem quisesse, mas foram despindo e insultando a procissão de derrotados, que se espalhou nas redondezas sem bens nem comida — muitos para morrer aos poucos, pelos campos, nus e sangrentos. Depois, os que ficaram foram torturados e a cidade saqueada. Nada que nos surpreenda.

Foi neste tétrico cenário que me apareceu a minha madalena de Proust. Entre mortes, torturas e violações, a autora descreve, a certa altura, como os ingleses se deixaram encantar pelos figos do Algarve, os maiores e mais doces da Europa, figos maduros a exalar um cheiro intenso, pendurados em deliciosas figueiras, pegajosas de tanto sumo.

Por aqueles dias, o Algarve — diz-nos a autora — «estava sob um calor africano». Sentir ali, naquela livraria de Cambridge, o cheiro aos figos portugueses ao sol, transportou-me sem querer para velhos dias da minha infância, em que ia para a terra da minha avó Leonor e do meu avô Faustino apanhar figos para os comer, logo ali, debaixo de um calor intenso. É verdade que não era no Algarve, mas sim no Ribatejo. Mas não importa. Aquele parágrafo lido ali em pé, num livro que encontrara ao acaso naquela livraria inglesa, trouxe-me como um murro a saborosa recordação do cheiro dos figos maduros, que me entrou pelas narinas e me fez respirar fundo de novo (segundo erro).

O peixe-balão

Pois bem. Comecei então a sentir uma certa comichão no pescoço.

Alguma coisa não estava bem.

Paguei o livro a correr e saí. Comecei a transpirar e a achar que Inglaterra estava estranhamente quente. O calor subia-me pelo colarinho e, por momentos, confundi-o com a recordação do calor ribatejano da minha infância. Ou será que o cérebro me estava a transportar para aquele relato antigo de cruzados e mouros à bulha num Algarve a ferver?

Não sabia. Comecei a andar mais depressa, cada vez mais incomodado. A comichão invadia-me o corpo. Telefonei à Zélia a perguntar onde estavam.

Quando, por fim, a vi, acenei e ela começou a andar na minha direcção, com a cara cada vez mais preocupada. Quando chegou ao pé de mim, pôs a mão na boca — e, enfim, não conseguiu evitar dar uma gargalhada. Isto porque eu parecia, nas palavras dela, um peixe-balão.

Segundos depois, todos perceberam que não era caso para rir. Fomos a uma farmácia e lá me deram um anti-histamínico, que, mesmo assim, demorou bastante tempo a fazer efeito.

A verdade é esta: aqueles figos imaginários provocaram-me uma bruta alergia. Nunca tal me tinha acontecido, mas percebi que folhear livros antigos tem o seu risco. Os meus pais, ao verem-me inchado e de lábios roxos, já andavam à procura do número do hospital.

Felizmente, uma lufada de ar fresco (coisa que não falta naquela ilha) pareceu dispersar a alergia. Todos respirámos fundo — fora da livraria, dizem que não faz mal.

Enfim, contra aquilo que a prudência recomendaria, quando me vi de novo com a minha cara habitual e voltei a sentir o delicioso frio inglês, a primeira coisa que fiz foi voltar ao livro, para cheirar outra vez os figos da minha infância nas mãos de brutos ingleses — que por esses dias descobriam pela primeira vez as maravilhas do Algarve.

(Crónica no Sapo 24.)

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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1 comentário
  • Suspirei de alívio no final. Afinal era uma alergia aos bicharocos dos livros que em Mafra são eliminados pelos morcegos e em Cambridge ainda andam à solta. Ainda pensei que tinha levado uma turra de um bretão e que tinha ficado com a cara inchada mas felizmente a história foi mais cordata. O anti-histamínico sempre resultou!!
    Abraço

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Marco Neves

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