Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Ó gente que recusa os feios refugiados no meu país…

… deixem lá ver se percebi:

  • Não podemos ajudar pessoas que fogem da guerra e do terrorismo porque no meio delas ainda pode vir, sei lá, um terrorista (ou, pelo menos, algum gajo de barba)?
  • Recebermos refugiados que equivalem a aproximadamente 0,1% da população europeia vai acabar com a cultura europeia e vai significar a imposição dos valores radicais islâmicos a toda a Europa?
  • Todos os refugiados sírios são, obviamente, gente fundamentalista, que vem para a Europa para obrigar as europeias a usar burqa?
  • Quando queremos ajudar alguém, temos de garantir que é português e, se não for, só podemos ajudar quando todos os portugueses estiverem bem tratados (e, de preferência, com um Ferrari na garagem)?
  • Não podemos ajudar refugiados muçulmanos porque há países muçulmanos ricos que se recusam a fazê-lo? Enquanto houver um país que erra, temos de errar ainda mais?
  • Quando alguém quiser ajudar um sem-abrigo, convém pedir o Cartão do Cidadão, não vá dar-se o caso de não ser português?
  • Temos de aconselhar todos os portugueses emigrados a voltar, porque os países onde estão têm de pensar primeiro neles próprios?
  • Nós, que queremos ajudar estes refugiados, somos uns ingénuos, alucinados, hipócritas, traidores, mariquinhas que gostamos de ajudar gente má? E tudo o que nos acontecer de mau é merecido?
  • As pessoas que estão a ajudar estes refugiados (ou a querer ajudá-los) nunca ajudaram ninguém, ao contrário das corajosas vozes anti-refugiados, que passam as noites a ajudar sem-abrigo? É isso?
  • Ao ficarmos chocados com as dezenas de mortes no Mediterrâneo, somos uns sonsos, armados ao politicamente correcto? Acima de tudo, português que é português tem de ser politicamente incorrecto?
  • Só podemos ajudar pessoas que se comportem exemplarmente (todos, sem excepção!) e que, depois de passar frio e fome e medo de levar bombas na tola, saibam, mesmo assim, limpar os autocarros que lhes emprestamos (e não fazer muito barulho, para não incomodar as pessoas de bem)?
  • Se queremos ajudar os refugiados, quer dizer que não queremos acabar com a guerra e não sabemos pensar em soluções a longo prazo?
  • Só convém ajudar pessoas limpinhas e que tenham feito o crisma?
  • Devíamos ser todos muito nacionalistas, erguer barreiras, ignorar as desgraças à nossa volta e ser, assim, muito limpos, muito portugueses, cheios de força e pêlo na venta, a dar murros na mesa contra esses mariquinhas que gostam de gente pobre que nem sequer percebe a cultura europeia?
  • Devíamos ser todos muito corajosos e matar na origem qualquer vontade de ajudar os outros só porque têm o azar de ser estrangeiros (c’horror)?

Se disser que “sim” a tudo já não sou ingénuo? Já posso ser considerado patriota? E Portugal fica a salvo de ataques terroristas? E mundo fica melhor? Esperem, o mundo, não! Portugal! O mundo não interessa, só os nossos, só os nossos…

"Xô! Não queremos gente esquisita!"
“Xô! Não queremos gente esquisita!”

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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