A palavra «jantar» tanto pode ser um verbo («Estou a jantar!») como um nome («O que é o jantar?»). Não é nada de extraordinário. Este tipo de mudança de classe de uma palavra chama-se, hoje em dia, «derivação por conversão» e é, com este ou outro nome, um mecanismo regular e antigo da nossa gramática.
Ora, às vezes há reacções às palavras que não se explicam pela simples análise gramatical. Afinal, se ninguém reage mal perante «O jantar está na mesa!», cai o Carmo e a Trindade quando alguém diz «O comer está na mesa!»… (Isto, claro, em certas casas — porque, noutras, quando alguém diz «O comer está na mesa!», o que acontece é vir toda a gente para a mesa…)
Estamos perante profundas e antigas irritações!
Nada contra as irritações. Há palavras de que não gostamos. É normal. O problema é a confusão que muitos fazem entre irritação e correcção gramatical. A expressão «o comer» é gramaticalmente irrepreensível — foi criada através de um processo legítimo e descrito nas gramáticas, é usada por milhões de portugueses e está na melhor literatura.
Deixo aqui várias frases em que usamos outros nomes criados através de derivação por conversão a partir de verbos:
– «O saber não ocupa lugar!»
– «Aquele homem tem um andar peculiar.»
– «O teu olhar é lindo!»
– «O falar típico daquela aldeia é muito interessante.»
– «“O jantar está na mesa”, disse a minha avó.»
– «“O comer está na mesa”, disse a minha avó.»
Há quem nunca tenha reparado neste fenómeno — e, no entanto, se for falante nativo de português, fará várias derivações por conversão ao longo do dia, de forma inconsciente. Mesmo que não o faça no caso de «o comer», fá-lo-á, certamente, com «o jantar», «o saber», «o falar», «o cantar», entre tantos e tantos outros verbos transformados em nomes.
É perfeitamente razoável que um falante não saiba o nome da derivação por conversão (que, aliás, mudou de nome nos últimos anos na terminologia usada nas escolas). Ninguém sabe tudo sobre a língua. O problema é quando a falta de conhecimento se transforma em certezas sobre a língua: quantas vezes não ouvi eu dizer que «o comer» não se diz porque «comer» é verbo!! (E, sim, a frase é mesmo dita com dois ou três pontos de exclamação no fim.) Bolas, é verbo — e é substantivo! As palavras podem mudar de classe para criar novas palavras. Não me parece ajuizado tentar simplificar a língua à força, eliminando um dos mecanismos de criação de novas palavras.
Não tenhamos medo. Não há aqui nem uma gota de «anarquia linguística». Basta pensar que, quando mudam de classe, as palavras começam a comportar-se como orgulhosos jogadores do novo clube. Assim, um verbo, quando é transferido para o clube dos nomes (deixando um gémeo no clube dos verbos), começa a usar artigos e outros determinantes, como qualquer outro nome. Também um adjectivo, quando se transforma em advérbio (um outro tipo de conversão), deixa de variar em número e género e passa a ser uma palavra invariável. «Alto», por exemplo, varia em género e número quando é adjectivo («Ela é muito alta!») e é uma palavra invariável quando é advérbio («Ela fala alto»).
Quando discuto esta questão, encontro sempre algumas reacções comuns.
Há quem me diga que, apesar de ser gramaticalmente correcta, a expressão é feia. Nada contra: ninguém é obrigado a gostar desta ou daquela expressão. Não convém é confundir o gosto pessoal com a gramática da língua.
Há ainda quem, quando repara que é perfeitamente possível transformar verbos em nomes, se lembre da comida. Ah, já existe uma palavra para dizer a mesma coisa! É por isso que «o comer» é erro! E assim se esquece, por momentos, da existência dos velhinhos sinónimos…
Outros dizem-me que há uma razão qualquer, muito profunda, para que «o comer» seja erro, mas «o jantar» nem por isso. A razão apresentada é sempre uma qualquer «regra» inventada à pressão, que não existe na língua e serve apenas para dar ares de profundidade gramatical a uma irritação pessoal. Um exemplo? Já fui confrontado com o argumento de que a transformação de verbos em nomes só se pode fazer quando estamos perante um conceito. Gostaria de saber que conceito teria a pessoa da palavra «conceito» para achar que «o comer» não é um conceito…
Por fim, há quem sorria, com algum desprezo: a expressão «o comer» pode estar correcta, mas define bem a pessoa que usa. É bem provável que assim seja: a maneira como usamos a língua diz muito de onde vimos, o que fazemos, quem somos. Ora, é verdade que «o comer» é uma expressão típica, mas não exclusiva, do registo popular — já no caso de «o jantar», é o termo «a janta» que se associa ao registo popular.
Por que razão «o comer» é mais frequente no registo popular do que noutros registos (e mais frequente em certas famílias do que noutras) e «o jantar» é usado em todos os registos e por todas as famílias portuguesas?
São correntes profundas de uso, muito difíceis de cartografar. Estamos a navegar pelas águas difíceis da sociolinguística, águas que levam alguns a preferir «vermelho» a «encarnado», enquanto outros usam os dois termos sem medo (e este é apenas um de muitos exemplos).
Sim: muitos termos têm um peso social e uma cartografia de uso particular. Mas dizer isto é muito diferente de afirmar que «o comer» é um erro gramatical ou que um verbo nunca se pode usar como nome…
Para terminar, imagino alguém a tremer horrorizado perante a expressão, lembrando-se do raspanete que ouviu do avô quando, em novo, disse «o comer» por engano. A criança de então ficou convencida que as boas pessoas — como o avô — nunca dizem «o comer». A mesma pessoa, muitos anos depois, já adulta, é confrontada com portugueses vindos de famílias onde, à mesa, tanto está a comida como o comer… E os avós desses portugueses também são excelentes avós! É então que a pessoa que não diz «o comer» tenta encontrar uma qualquer justificação para o velho horror: tem de haver uma regra que proíba «o comer»! A expressão não pode estar certa!
E, no entanto, está certa. É apenas uma questão de diferentes hábitos linguísticos: há quem use «o comer» e «a comida» e quem use apenas «a comida». Que estas diferenças resultem, uma vez por outra, em tremendas discussões é, para mal dos nossos pecados, outro facto da língua — aliás, das línguas, pois não há idioma que escape a estas interessantes confusões.
Agora vamos ao jantar, que o comer está na mesa…
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Sobre o mesmo assunto, temos este artigo do Ciberdúvidas. Agradeço a Teresa Coutinho ter-me apontado para «o jantar» como exemplo paralelo, mas socialmente neutro, a «o comer». Agradeço ainda a Luís Pontes ter recordado esta questão ao partilhar, há pouco, um dos primeiros artigos deste blogue. Já agora, convido todos os que gostam de boa comida — digam ou não digam «o comer» — a passear pelo blogue do Luís: Outras Comidas.
Nunca havia ouvido tal expressão no Brasil, mas faz todo o sentido. Aqui utilizamos janta e jantar indiferentemente como substantivo mas, na hora H, jantamos o jantar.
Amei, Professor! Parabéns! O artigo foi bem conseguido!
Antes de mais, parabéns pelo seu blogue, blogue que sigo com grande interesse.
E agora que está a falar de jantar, quando eu comecei a aprender português fiquei um pouco chocado pelo nome das refeições (pequeno almoço, almoço, lanche, jantar, ceia) quanto ao momento do dia a que se referiam e como estas divergiam das formas do galego (almorço, jantar, merenda e cea). Talvez vez poderia explicar a evolução. Terão influência do francês?
Obrigado pelo seu trabalho.
Muito obrigada por ajudar a manter o colorido da nossa Língua! No dia (se esse dia alguma vez vier) em que todos falarmos da mesma maneira, usando as mesmas expressões, com a mesma forma de as pronunciar, a Língua Portuguesa tornar-se-à monótona, na minha opinião…
Este artigo trouxe-me lembranças que agora partilho. Em homenagem às minhas avós, ambas Minhotas, numa onda de nostalgia, deixo os termos que ambas usavam para as refeições. Todos muito fora de moda 🙂
-“Tomar o Aurmoço ou Aurmoçar” para Pequeno-Almoço
-“O comer (ou a comida) está na mesa.” Ou ainda, “O jantar está na mesa” Para o actual almoço . O jantar era por vezes usado para indicar a refeição do meio-dia 😀
-“Merendar” para o actual lanche. (Este é a minha expressão preferida )
-“Vamos cear” ou “A ceia está na mesa” para o actual jantar.
Uma vez mais, um gigante obrigado pelo seu trabalho!
Gostei de seus comentários.
Aurmoço e aurmoçar são usados no Brasil como resquícios arcaicos do falar caipira. Soam mal, mas são usados.
No Brasil almoço é ao meio-dia e jantar é à noitinha, sempre. O que existe de similar no Brasil é o “jantarado”. O jantarado é um almoço formal, um pouco mais tarde, num dia de festa. É jantarado porque não se espera haver jantar naquele dia.
A merenda é usada dentro de um contexto mais específico, nas escolas, hora da merenda, merendeira, etc. Na maioria das vezes, usamos o anglicismo lache.
Ceia existe no Brasil, mas é usado de forma muito restrita. Jesus foi na Santa Ceia e nunca no Santo Jantar. E no Natal, temos a ceia da meia-noite.
É, falamos um rude e doloroso idioma, mas seus comentários confirmam o que eu sempre defendo: falamos a mesma língua.
Seus comentários são sensacionais. Permita a este brasileiro dizer do sabor de certas expressões lusíadas. Desconhecia totalmente o delicioso ” cai o Carmo e a Trindade”. Nunca levei um raspanete e se o levasse iria pensar, sendo educado, numa bronca. Se fosse mais grosso iria para uma palavra ou expressão chula. E finalmente a mesóclise. Poucos – quase ninguém – a usam. Usou-a o Presidente Janio Quadros. O Pres. Michel Temer foi repreendido por usar o pronome mesoclítico. Ironizou na resposta: ” evitá-lo-ei. Parabéns.
ET: Em Minas, usam muito janta. Minha vó não gostava. Preferia sempre jantar. Aqui jantar pode significar também uma vitória incontestável: ele “jantou” todo mundo no concurso”. É rude e doloroso este idioma.
Esta veio mesmo ao encontro de uma série de dúvidas que há meses me andavam a moer o cérebro. Uma senhora num programa qualquer desses de “acasalamento” estava escandalizada com o modo de falar do par que lhe tinham arranjado e a expressão que ela (e o apito estúpido do programa, diga-se!) tinham censurado ao sujeito era exactamente esta do “comer”. A senhora torcia a boca num trejeito desdenhoso e afirmava que o correcto era a palavra comida. A mim sempre me pareceu que “o comer” era perfeitamente correcto, talvez apenas pouco sofisticado para certos ouvidos. Mas, como o Marco Neves bem referiu o não gostarmos de certas palavras não equivale a que elas não estejam correctas. Eu por exemplo detesto a palavra virilha e a sua equivalente inglesa ainda mais e nem sei ao certo porquê. Não gosto, deu-me para aqui.
Prof Marco Neves,
Antes de mais muito gosto em conhecê-lo.
Deixe que lhe coloque a seguinte questão se me permite…
Este seu texto vem por acaso no seguimento de um comentário em tom de censura feito por um comentador do BB?
É que, soa-me a tal.
Confesso que na altura que o ouvi fiquei surpresa e satisfeita por um lado por estar a aprender algo novo. Algo que me pareceu lógico, pela explicação dada mas que me surpreendeu de igual forma na medida em que, nos meus 46 anos de vida sempre tinha ouvido e aplicado essa expressão mas é normal que tivesse estado enganada este tempo todo e aceito-o. Contudo, achei um pouco desagradável a forma como o comentário surgiu e como o apontaram como sendo algo completamente absurdo e digno de alguém bastante ignorante. Não me agradou minimamente a forma como se dirigiu à pessoa que emitiu essa observação e a forma como se colocou sob uma perspectiva bastante superior. Afinal, venho hoje a confirmar que a ignorância estava do lado errado do filme… 🙂