Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

O que é o tribalismo linguístico?

Algumas pessoas impacientes com a profusão de idiomas do mundo dizem que seria mais fácil falarmos todos a mesma língua. Talvez fosse mais fácil, mas esta impaciência ignora um dos aspectos essenciais da linguagem humana: para lá de servir de meio de transmissão de pensamentos (uma telepatia muito real), a linguagem humana serve para marcar a que tribo pertencemos. 

Num mundo complexo como o nosso, esta necessidade muito antiga dá origem a tensões e conflitos. Não só todos pertencemos a muitas tribos, como muitos de nós já percebemos que o tribalismo é algo que tem de ser controlado para diminuir a violência no mundo. Mesmo assim, não podemos varrer esta característica das línguas para debaixo do tapete. Ignorá-la é a melhor forma de dar força a este tribalismo linguístico, que me parece ser uma característica biológica da espécie humana que nem sempre dá bons resultados (mas que é quase sempre sentido como algo natural e genuíno).

Vejamos alguns exemplos que mostram o tribalismo linguístico em acção:

  • O Acordo Ortográfico dá origem a tantos anti-corpos não por causa dos vários erros científicos, mas porque cria uma sensação de apagamento daquilo que é especificamente português. Ora, se há coisa que o nosso coração tribalisma odeia é a hipótese de a nossa tribo se apagar, imersa numa tribo mais larga. Dizer que o Acordo Ortográfico dilui o nosso português noutra coisa qualquer é uma ideia muitíssimo discutível, mas está aqui a origem de muito do horror ao dito Acordo. Se a reforma ortográfica fosse no sentido de distinguir de forma mais marcada as várias formas do português, é provável que as reacções não fossem tão fortes.
  • Quando um professor universitário lisboeta dá uma aula em inglês, não está apenas a possibilitar a comunicação com alunos estrangeiros. Está também a assinalar a pertença a uma comunidade mais ampla de académicos, que não se revê nos apertados mundos de cada língua. Neste exemplo, é provável que a função de comunicação da língua tenha a primazia, mas a identidade está lá, mesmo sem querermos.
  • Quando o Luxemburgo obriga os estudantes a aprender luxemburguês, francês e alemão está a tentar manter a capacidade de comunicação com os gigantes vizinhos, mas também a marcar a sua identidade. Quer ter o melhor dos dois mundos: a comunicação e a identidade.
  • Quando um catalão prefere que os filhos aprendam todas as disciplinas em catalão e não em espanhol não está preocupado com as possibilidades de comunicação do filho (que até estão asseguradas pela aprendizagem do espanol e do inglês). Está preocupado com a identidade catalã do filho — e com a possibilidade de apagamento dessa tribo noutra tribo. Um madrileno dirá que é contra esse sistema de imersão linguística porque todos os espanhóis devem falar a mesma língua, para poder comunicar entre si. Mas bastará alguém propor o ensino obrigatório de todas as disciplinas em inglês (para garantir a comunicação internacional) e veremos uma reacção parecida com a do catalão: “nem pensar!” A comunicação é muito útil, mas o nosso sangue ferve pela nossa tribo (para o bem e, muitas vezes, para o mal).
  • Os escoceses já quase só falam inglês, mas orgulham-se do sotaque e das palavras próprias da sua nação. Não é preciso uma língua própria para nos apegarmos a todos os sinais linguísticos de diferença linguística: por vezes, umas quantas palavras bastam. Da mesma forma, os austríacos insistiram na protecção das palavras especificamente austríacas a nível da União Europeia: sim, falam alemão, mas querem proteger aquilo que permite distinguir as duas nações.
  • Muitas pessoas gostam de usar o seu sotaque regional porque podem marcar a diferença no mar mais amplo da identidade nacional. Da mesma forma (e sem se aperceberem), muitos lisboetas usam o seu sotaque, chamando-lhe “falta de sotaque”, sublinhando a sua identidade de cidadãos da capital, suposto modelo a partir do qual tudo o resto se mede: também estão a marcar a sua tribo (mais ou menos imaginada).
  • Quando algumas pessoas voltam à terra dos pais, começam a falar com o sotaque da infância quase sem querer: querem voltar a fazer parte da pequena tribo. Da mesma forma, quando estão na grande cidade, assumem o sotaque que por lá se usa como forma de sublinhar a identidade urbana.
  • Muitas pessoas que se divertem a apontar os erros dos outros estão apenas a proteger uma ideia de pureza associada à ideia de língua nacional, que deve ser protegida como se dum cristal se tratasse. Os erros e os desvios à norma são uma espécie de traição encapotada. Os puristas, no fundo, estão a dar vazão à ancestral necessidade de proteger a tribo dos desvios internos — e quando se viram contra os estrangeirismos, estão a proteger a língua das ameaças externas.

Os exemplos acumulam-se — e as complicações também: pensemos nos emigrantes, nas classes sociais, nas discussões hostis, onde os sotaques começam a divergir em poucos minutos (sem ninguém dar conta).

Estamos a falar duma característica que julgo ser parte da biologia dos seres humanos: usamos a língua para saber quem faz parte da tribo e quem não faz. Ora, num mundo complexo como o nosso, em que estamos muito longe de pertencer a uma tribo clara e definida, esta questão é difícil. É por isso que o uso da língua dá orgiem a discussões tão apaixonadas: os erros, os acordos, os estrangeirismos, a imposição desta ou daquela forma, a forma como as línguas são importadas ou impostas, etc.

Para lá do interesse intelectual, convém olhar para as línguas como sinais de identidade porque podemos descortinar alguns aspectos do mundo que, para lá de muito interessantes, são muito perigosos. Aliás, atrevo-me a dizer que estudar o tribalismo (linguístico e não só) é muito urgente. Disso depende a nossa sobrevivência.

Este texto foi republicado no livro Doze Segredos da Língua Portuguesa.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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2 comentários
  • Achei o artigo muito atinado. Como galego que promove que a Galiza fala português entendo-o bem 😉 O tema das identidades é delicado.

    Quanto aos espanhóis que querem que todos os habitantes do Reino da Espanha falem castelhano porque é mais “útil”, para além de que já saber falar espanhol, era bom perguntar-lhes se eles renunciariam à sua língua se só fosse falada em Castela. Acho que não.

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