Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

O que é que Budapeste tem?

Ora, perguntem lá a um português quais são as imagens que lhe vêm à cabeça quando ouve falar de Sevilha e depressa começam a ouvir castanholas e palmas à sevilhana. (Ui, e Sevilha é tão mais do que isso…)

Agora perguntem o que acham de Barcelona. Lá virão opiniões em catadupa, desde a mais disparatada (“ah, aquilo do Gaudí é uma brincadeira de mau-gosto”) até às mais sabidas (“se queres conhecer Barcelona tens mesmo é de ir à Gràcia depois das dez, ali como quem vira para…” e por aí fora).

Agora, perguntem lá a um português típico (esse ser difícil de encontrar) o que acha de Budapeste.

Silêncio.

Algum franzir de olhos.

Talvez, a medo, “isso é na Hungria, não é?”. Ou mesmo: “a capital da Roménia?” Ou então: “as cidades de Leste não me atraem”.

Tudo o que está para lá de Berlim é vago e distante — como se ainda tivéssemos a cortina de ferro nos olhos.

Pois bem, esta falta de estereótipos nem é muito má para quem viaja. Porquê? Porque não há nada pior para um viajante do que as expectativas. Ou são muito altas e a cidade desilude ou são muito baixas e a cidade desilude também (porque encontramos sempre maneira de ver as coisas da pior forma possível).

Assim, em branco, sem ideias, é que se quer um viajante daqueles que gosta mesmo de alargar as vistas (e não apenas de dizer que alarga as vistas).

E Budapeste é uma surpresa… (Pronto, lá fui estragar a inocência das expectativas de quem nunca cá veio.)

Não me vou pôr aqui a desfilar monumentos, avenidas, coisas a ver e a fazer. Não há grande interesse nisso — ou vêm cá ou não vos interessa por aí além.

Deixem-me só situar-vos um pouco esta cidade no imaginário de todos nós.

Sim, estamos aqui no meio da Europa Central. A Hungria é um país com um tamanho e população semelhantes a Portugal, mas com esta grandessíssima diferença: faz fronteira com 7-sete-7 países! Por isso, embora não tenha mar, acaba por sentir-se menos ilha do que nós, aqui perdidos entre o mar e Espanha, a Espanha e o mar — como o menino Jesus que ora está estendido ora está deitado do mítico sketch markliano feito pelo Herman há tanto tempo.

Budapeste era uma das capitais do Império Austro-Húngaro. É a cidade do Danúbio. Está a poucas horas de Viena, de Zagreb, de Liubliana. Faz fronteira com a Áustria e com a Ucrânia. É, de facto, um país da Europa Central.

A um português desprevenido, surpreende por ser tão grande. E surpreende por ser tão agradável, cheia de verde e rio e água e edifícios que deixariam muitas outras cidades um pouco mais arrogantes a roer-se de inveja não fosse dar-se o caso de as cidades estarem bem pegadas ao chão e, assim, não se conhecerem umas às outras.

Daqui sente-se a presença da Transilvânia, que os húngaros dizem ser um pouco sua, por lá também se falar esta estranhíssima língua. Resvalemos um pouco para o kitsch: andamos pelas ruas e muitos edifícios lembram castelos de condes misterioros, princesas a dançar valsas, vampiros à procura do sangue dessas mesmas princesas, torturas medievais, mistérios revolucionários, batalhas entre nazis e soviéticos, décadas para lá da cortina — e voltam os reis e as maldições, os jardins e as estátuas de heróis de aspecto algo exótico, trazendo em si um pouco das estepes da Ásia donde, dizem, veio esta estranha tribo de língua muito distante (tudo isto, claro está, é muito fantasioso, porque as tribos europeias, por esta altura do campeonato, estão tão misturadas que as nações são uma forma inventada de saciar a nossa sede de tribalismo).

Ora, para já fico por aqui. Mas deixem-me dizer-vos outra coisa: apesar de tudo, Budapeste, aqui na outra ponta da União Europeia, também nos deixa ver o que temos em comum com todos os europeus: são os cafés, os bancos do jardim, as avenidas afrancesadas do século XIX, os turistas em todo o lado — até certas ideias para inglês ver (como o carro em que os bebedores de cerveja pedalam pela noite fora ou o autocarro que se transforma em barco)…

Já agora, Budapeste e Lisboa têm esta coisa a que alguns chamariam charme: são cidades bem reais, onde quem as visita se sente transportado para histórias que julga já ter ouvido e que são saborosas e que têm esse encanto de sairmos muito facilmente das ruas de turistas e ficarmos ligeiramente perdidos.

Entramos num filme, sim, ou numa história com bruxas e ogres e vampiros. E no fim acordamos e estamos a tomar café num barco no Danúbio, com o castelo de Buda lá em cima e a cidade bem europeia a ferver de gente e autocarros à nossa volta.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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