Há um ano, deixei-me levar pela loucura de escrever um romance de aventuras. Essa loucura ainda anda por aí nas livrarias e, agora que estou quase a lançar um outro livro, decidi oferecer o primeiro capítulo aos meus leitores que ainda não conhecem o tal tesouro escondido na Ilha de Peniche. Aqui fica…
Caiu-me ao colo uma história que está mesmo a pedir para ser transformada num daqueles livros exagerados e tremendos, com tesouros, espadas e gente escondida numa esquina – ah, e uma baleia! É uma tentação e calhou-me na rifa logo a mim, que sempre quis escrever um folhetim – não um romance, uma novela ou um conto, mas precisamente um folhetim, com mortos, pancada, segredos e amores delirantes. Nunca tive tempo ou desculpa – ou assunto, para dizer a verdade. Até hoje. Deixo-vos então com a história do meu amigo Duarte, que andou à caça de tesouros numa certa madrugada…
«10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1 – Feliz Ano Novo!»
À beira da praia, naquele hotel do Algarve, todos gritávamos, felizes por alguns segundos, de copo na mão e passas na boca.
À luz dos primeiros foguetes no céu, a Rita e eu beijámo-nos, tentando arrumar as passas na boca, numa atrapalhação de línguas, narizes e risos. Senti uma vibração no bolso, mas não liguei. Fechei os olhos por um segundo e, quando voltei a abri-los, vi o fogo reflectido nos olhos da minha namorada e nas bolhas do champanhe que ela bebia.
Senti o telefone a vibrar de novo. Era a minha mãe, quase de certeza. Tirei o aparelho do bolso e percebi que era um número desconhecido.
– Estranho…
Atendi e ouvi uma voz arrastada, com restos de sotaque de Peniche: «Duarte Contreiras?» – Sim, sou eu.
«Não imaginas como foi difícil encontrar o teu número…»
A Rita olhava para mim, tentando adivinhar a conversa pelos trejeitos da minha cara. Tinha de fazer um esforço para perceber a voz do homem, no meio da ruidosa alegria dos primeiros minutos do ano.
– Quem fala?
«O meu nome é Pedro Garcia. Sou um amigo de infância do teu avô Mário Contreiras.»
Senti um baque. O meu avô morrera há quase 20 anos, mas ainda hoje tenho saudades de o ouvir a contar-me histórias. A voz continuou:
«Há 25 anos que estou à espera deste momento. O teu avô fez-me guardar um envelope para to entregar, mas só em 2017.»
Calou-se por momentos. Tinha a respiração agitada.
«Não consegui esperar mais do que uns segundos. Há décadas que quero descobrir aquilo que está neste envelope.»
Eu estava de boca aberta. Seria alguém a gozar? Lembrei-me das velhas histórias do meu avô e da última discussão que tivemos, antes de ele morrer.
O homem continuou:
«Logo que possas, vem ter comigo. Quando passo com os dedos, parece-me uma chave… Sempre quis saber onde está o tesouro e tenho quase a certeza que o teu avô o encontrou…»
O fogo de artifício, entretanto, tinha acabado.
Olhei para a Rita, que me perguntava só com os lábios:
– Mas quem é?
Fiz-lhe um gesto para que esperasse.
Se isto tivesse acontecido a qualquer outra pessoa, acredito que desligasse o telefone convencido de que era uma partida de mau gosto. Mas a verdade é que o meu avô tinha passado a vida a contar-me histórias dum tesouro. Acabei por dizer:
– Posso ir ter consigo agora?
A Rita abriu a boca de espanto, fez que não com a cabeça e desatou a dizer em voz alta, já um pouco zangada:
– Ainda temos mais dois dias marcados! Não podemos sair daqui assim…
Fiz-lhe sinal que esperasse. Ao telefone, o homem dizia-me:
«Vivo no Baleal. Vem cá ter depressa.»
– No Baleal? – Olhei para o relógio no pulso e disse, para desespero da Rita: – Então, daqui a umas quatro horas estou aí. Pode dizer-me a morada exacta?
Pedi o telemóvel à Rita, que mo deu de cara franzida, sem perceber que razão podia eu ter para combinar fosse o que fosse para as quatro da manhã do dia 1 de Janeiro.
Apontei a morada e despedi-me:
– Então, até logo!
«Até logo!»
E desligámos.
– Podes explicar-me o que raio se passa? Onde é que tu queres ir? Não sabes que temos quarto até dia 3?
– Rita, meu amor, confia em mim: tu queres vir comigo. Não é todos os dias que se recebe uma herança!
– Uma herança? Mas que herança?
– Lembras-te de te falar do meu avô e daquelas histórias todas dum tesouro escondido lá em Peniche? – Sim, lembro-me.
– Bem, acho que vou descobrir onde está esse tesouro.
Ela riu-se:
– Então é desta que me levas à tua terra?
Sim, é verdade: nunca tinha levado a minha namorada a Peniche. Imperdoável, eu sei. Mas aquele era o dia – logo o primeiro do ano. Mal sabia ela o que a esperava nessa terra onde nunca fora.
A primeira madrugada
Contar aventuras não é difícil – mas descrever uma viagem de auto-estrada do Algarve a Peniche? Durante a noite? O que posso eu fazer? Talvez relatar a lenta progressão do conta-quilómetros? Informar o leitor de que fizemos a viagem e pronto?
Ali por alturas da estação de serviço de Grândola, virei-me para a Rita:
– Desculpa não ficarmos o resto dos dias…
Ela encolheu os ombros:
– Não faz mal, desde que encontremos o tal tesouro – e riu-se incrédula com o que tinha acabado de dizer.
Já eu senti um calafrio na espinha. Seguramente, não ia encontrar tesouro nenhum. Não sou muito dado a acreditar nestas aventuras – mas, por outro lado, tinha quase a certeza de que o meu avô me deixara qualquer coisa e estava cheio de vontade de abrir o envelope e ler as palavras dele.
Talvez fosse a adrenalina da viagem imprevista ou a expectativa do tesouro que nos esperava, mas o resto da viagem continuou em boa-disposição. Falámos das histórias do meu avô, imaginámos mil aventuras num delírio saboroso – e assim se passaram as horas numa daquelas raras conversas de namorados em que tudo vale e a vida até parece uma aventura.
Mas também é verdade que a noite é longa e os quilómetros pesam, por mais tesouros que nos esperem. Quando chegámos à saída da A8 com a placa a indicar «Peniche», já pouco falávamos. O som do pisca-pisca pontuava o sono cortado pela ansiedade.
Saímos na Serra d’El-Rei, em direcção ao Baleal.
Logo à saída da Serra, a Rita levantou os olhos, admirada. No horizonte, à nossa esquerda, víamos uma névoa de luzes penduradas no mar.
– Que cidade é aquela?
– Peniche. Se olhares com atenção, consegues ver, lá muito ao fundo, o farol das Berlengas…
Minutos depois, chegámos ao Baleal, estacionámos e atravessámos a pé a língua de areia que liga a antiga ilha ao continente.
– Nunca me disseste que isto era assim tão…
– Tão quê?
– Não sei… Tão interessante. Aquelas são casas de pescadores?
– Não, não. São casas de gente de fora, que vem aqui passar férias.
Pelo areal, havia grupos de jovens a conversar em calmarias pós-alcoólicas. Um casal estava deitado, a olhar para as estrelas, de mãos dadas. Mais ao fundo, dois homens entravam pelo mar, num banho inaugural que devia ser tão agradável como facas – afinal, das nossas bocas saíam vapores do frio que estava.
Uma casa na ilha
A casa de Pedro Garcia escondia-se numa das pequenas travessas que atravessam o casario apertado do Baleal. Como se estivesse à nossa espera atrás da porta, o homem apareceu-nos ao primeiro toque da campainha.
Era um velho com mais de 90 anos, mas que mesmo assim tinha um ar alegre e um brilho entusiasmado nos olhos. Não precisou de perguntar fosse o que fosse para saber que era eu e deu-me um abraço atrapalhado. Estava quase a chorar.
– Eu era um dos melhores amigos do teu avô… Ele nunca falou de mim?
Fiz um gesto ambíguo. A verdade é que nunca tinha ouvido o nome dele – mas também sei que muitas das histórias do meu avô ficaram por contar.
–Esta é a minha namorada, Rita.
Entrámos e acompanhámos o velhote até um pequeno escritório com vista para o mar. Agora precisava de muito mais talento do que aquele que me calhou em sorte para conseguir descrever o cheiro daquela sala. Era o aroma da madeira queimada, com um travo de livros e ainda o perfume do chá que Pedro Garcia tinha preparado minutos antes, num cálculo certeiro da duração da viagem entre o Algarve e o Baleal.
Sentámo-nos num sofá, enquanto o homem nos servia o chá com simpatia.
– Quando tivermos tempo, tenho de te contar as histórias do teu avô!
Sorri enquanto bebia o chá e espreitava as paredes forradas de livros.
– Teremos tempo. Agora gostava de ver esse tal envelope… Vim do Algarve só para isso!
– Sim, claro. Há anos que espero por este momento. – Num gesto solene, entregou-me o envelope acastanhado, com o meu nome escrito num estilo que já não se usa. – Desde que o teu avô me deu esta missão que me interrogo sobre o que está aqui dentro.
Ficámos em silêncio. O velho limpava as lágrimas com um lenço de pano.
– O teu avô Mário confiou em mim para te entregar esta herança. É uma honra cumprir a promessa que fiz ao meu melhor amigo.
Passei a mão pelo envelope, tentando sentir as décadas que me separavam do momento em que o meu avô o fechara. Olhei para os livros pesados e solenes que nos rodeavam. Olhei para a cara ansiosa do velho. Olhei para a Rita, que estava tão curiosa como eu.
Num gesto menos cuidadoso do que a idade do papel aconselharia, abri por fim o sobrescrito.
Encontrei uma chave e uma fotografia amarelada que me deixou com o coração aos saltos.
O que era aquilo? O que é que o meu avô tinha feito?
Não sabia o que pensar daquela foto. Fiquei a olhar uns minutos e, depois, entreguei-a à Rita, que ficou tão baralhada como eu.
Já o velho sentou-se, lívido. Sabia muito bem que fotografia era aquela.
Era uma fotografia de três homens à entrada duma gruta. Dois estavam em pé. Um deles, o meu avô, parecia imperturbável, nem triste nem contente. O outro, muito alto, sorria, feliz, como um caçador a mostrar a sua presa.
O terceiro, vestido de nazi, estava de joelhos.
Tinha uma mordaça na boca e as mãos atadas. A cara era de puro terror.
Um mapa antigo
Por trás da fotografia, o meu avô desenhara um pequeno mapa com uma seta a apontar para uma floresta a sul da Atouguia da Baleia.
Por baixo, havia uma mensagem:
«Duarte, quero contar-te outra das minhas histórias e confessar-te um segredo. Foi o meu maior pecado e talvez o meu maior orgulho. Procura o baú que está na gruta assinalada no mapa. Assim ficarás a saber onde está o tesouro de que sempre te falei. Um tesouro que este nazi que aqui vês tentou roubar e nós não deixámos.»
Por baixo, noutra letra, entre aspas, aparecia nova frase: «Guardei o segredo na cabeça e o mapa na minha mão.»
Olhei para Pedro Garcia, que não dizia nada.
– Diga-me. O que é isto?
– Isso… – e calou-se.
Com os nervos à flor da pele e a adrenalina nas veias, não me contive e gritei:
– Diga-me quem são estes!
O velho tentou levantar-se.
– Desculpem, não me estou a sentir bem.
As mãos tremiam e deixou cair a bengala a que se tentava segurar. A Rita não conseguiu impedir que ele caísse de joelhos no chão, a chorar.
– Nunca pensei que o teu avô fizesse uma coisa dessas. Jurámos segredo! Fi-lo prometer que queimava a foto… Nem sei por que razão a tirámos… Foi aquele inglês maldito…
Sentou-se de novo no sofá. Pus-lhe a foto à frente dos olhos e, como implacável interrogador num qualquer filme de polícias, disparei:
– Quem são estes?
– Bem, este – disse o velho devagar, apontando para um dos homens que rodeavam o nazi – acho que sabes quem é.
– Sim, é o meu avô. E este?
O velho abanou lentamente a cabeça e não disse nada. Continuei:
– E o nazi?
– O meu problema, Duarte… O meu problema é a quarta pessoa desta foto…
– A quarta pessoa? – perguntou a Rita.
– Sim. Aquele que está por trás da máquina. Fui eu que tirei a foto. Nunca me arrependi tanto de alguma coisa como de ter tirado esta foto. E de ter participado naquilo.
– Aquilo o quê?
Calou-se de novo.
– Perguntem ao inglês. A culpa é dele.
– Ao inglês? Mas qual inglês?
Ficámos em silêncio a ouvir os soluços do homem, até que este se decidiu a responder:
– John Blacksmith. Deu-me cabo do sono para o resto da vida.
Olhei pela janela para as luzes da minha terra, onde já não vivia há tanto tempo… Aquele nome lembrava-me velhas histórias que ouvira há muito tempo da boca do meu avô.
Não sabia o que pensar. A fotografia perturbava-me, pois sempre associara o avô Mário a histórias infantis, algumas delas violentas, sem dúvida, mas daquela violência quase abstracta de duelos de espadachins, em que ninguém se aleija e ninguém morre – e ninguém está amordaçado e com ar aterrorizado aos pés de dois homens com ar de vitória cruel. E havia ainda isto: na foto, o meu avô tinha uma arma apontada à cabeça do nazi.
Tinha de tirar toda aquela história a limpo – até porque também queria saber se havia um tesouro ou não… Virei a fotografia ao contrário e apontei para o X.
– Onde será isto?
Pedro Garcia olhou para a fotografia com ar de quem já não se importava com nada…
– É o Planalto das Cesaredas… Foi aí que matámos o nazi.
– E foi aí que o meu avô escondeu o tesouro?
– Não sei.
Uma gruta na floresta
Pedro Garcia ficou em casa, sozinho, a beber chá e a pensar nos seus pecados, enquanto eu e a Rita seguimos para as Cesaredas em silêncio.
Não foi fácil encontrar a gruta: o mapa era muito impreciso e só quando o sol já estava a aparecer por entre as folhagens, encontrámos a entrada, junto às árvores que apareciam na fotografia.
Para o lado do mar, víamos Peniche a surgir do escuro do mar – e foi à luz da primeira manhã do ano que entrei com a minha namorada numa gruta onde nos esperava um tesouro. À luz tosca do telemóvel, vimos as estalactites e as estalagmites daquela catedral.
Os nossos pés escorregavam no musgo das rochas e a Rita teve de se agarrar ao meu braço.
– Não estou a ver nenhum tesouro…
Ouvimos um ruído de algo a rastejar.
– O que foi isto?
– Não sei – disse ela – mas está ali qualquer coisa.
Vimos um diamante desenhado numa rocha diferente das outras, como se tivesse sido transportada para ali. Com dificuldade, afastámo-la e encontrámos três velhas tábuas meio desfeitas, que partimos numa nuvem de pó. Respirávamos descontroladamente.
Nos filmes, estas cenas parecem mais fáceis – e sujam menos. Gastámos suor e músculo, mas, por fim, tínhamos a arca à nossa frente, mal iluminada pelo telemóvel.
Ao enxugar o suor, a Rita sujou a cara de terra e eu ri-me.
– O que foi?
– Fica-te bem esse ar de aventureira.
A minha aventureira apontou então para a arca e perguntou:
– Então, vamos lá descobrir que tesouro é este?
Senti um arrepio. Não seria, certamente, um tesouro aquilo que iríamos encontrar ao abrir a tampa.
Ouvia o meu sangue a pulsar nos ouvidos.
Enfiei a chave na fechadura, enquanto a Rita apontava o feixe de luz.
Quando, por fim, ergui a tampa, demos um grito que ecoou pelas paredes da caverna.
O que estava dentro do baú era um esqueleto.
A mão do morto
Depois do choque inicial, a Rita aproximou-se do esqueleto, enquanto eu apontava a lanterna do telefone para ver melhor o tesouro mais macabro de todos os tempos.
O feixe de luz passou pela caveira, ali perfeita num riso eterno, e desligou-se logo de seguida, pregando-nos mais um susto.
A bateria tinha acabado. Foi com as mãos a tremer que a Rita procurou o telefone.
– Liga este, agora.
Aproximámo-nos mais uma vez do morto:
– Olha, tem uns fiapos de roupa…
Atrevi-me a tocar nos restos de tecido e percebi que aquilo era um velho uniforme alemão da II Guerra Mundial. O tesouro do meu avô era, pelos vistos, um nazi morto.
– Olha, o esqueleto tem qualquer coisa na mão…
O nazi segurava uma pequena bolsa de couro. Tentei, com cuidado, removê-la por entre as falanges brancas, mas foi difícil. Acabei por partir um dos dedos do morto e, pela caverna, ouvimos um eco de ossos a chocalhar.
A Rita apertou-me o braço.
Dentro da pequena bolsa, estava um mapa antigo.
– Outro mapa?
Continua…
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