O artigo “O comer está na mesa”, que publiquei há um ano, acabou por ser muito partilhado pelo Facebook fora. Fico muito contente, até porque algumas das reacções foram de concordância, mesmo da parte de quem antes achava que dizer «o comer» era um erro linguístico e ficou a perceber que, na realidade, é uma questão social.
Gostava apenas de olhar com mais atenção para algumas reacções negativas, porque são interessantes para percebermos algumas ideias habituais nestas questões da língua. Podemos encontrar quase todas estas ideias aplicadas a outros «erros falsos», como o «espaço de tempo», o «fazer a barba», etc.
1. «Dou o braço a torcer. Mas não gosto.»
A reacção «dou o braço a torcer, mas continuo a não gostar» é absolutamente legítima. Afinal, uma pessoa não é obrigada a gostar de determinada expressão — o que não tem nada a ver com a correcção gramatical dessa mesma expressão. Já comparar este caso com «trouxestes» é um erro. «Trouxestes» é uma forma incorrecta no âmbito do português padrão, o que não acontece com «o comer». Já a reacção do terceiro comentador acima é típica e é descrita no artigo original. É uma espécie de irracionalidade linguística.
2. «É muito bimbo.»
Esta é uma reacção de quem não leu o artigo e mostra bem a questão social que está por trás do mito da incorrecção linguística de «o comer»:
Ou seja, da boca da mulher-a-dias, tudo bem, da boca doutra pessoa será sempre sinal de que essa pessoa é bimba. Ora, nem a mulher-a-dias nem a «bimba» estão erradas, em termos linguísticos (embora, como se vê, possam incorrer na fúria social de algumas pessoas).
3. «Acho foleiro.»
Exacto. Não esperava que aqueles que odeiam a expressão passassem a adorá-la. Queria apenas que percebessem este simples facto: a aceitação de determinada expressão em determinados círculos pode dizer mais sobre esses círculos do que sobre a correcção gramatical da expressão. Podemos não gostar de determinada expressão, mas isso não é desculpa para usar regras inexistentes só para justificar os nossos preconceitos sociais (preconceitos esses que são legítimos).
4. «Isto deve ter alguma coisa a ver com o Acordo Ortográfico!»
É uma espécie de reflexo condicionado de muitas pessoas: «Tem a ver com a língua e eu não concordo? Só pode ter a ver com o Acordo…»
5. «Ora, está errado porque [introduzir regra inventada à pressão]»
A reacção mais absurda será daqueles que, perante os argumentos linguísticos que apresentei, inventam regras à pressão só para justificar a sua preferência.
Aqui está um exemplo:
Ou seja, segundo este comentário, a transformação de verbos em substantivos só se justificaria se o substantivo se referisse a uma acção e não a um objecto. É uma «regra» inventada à pressão apenas para justificar uma preferência com base numa suposta incorrecção. Os próprios exemplos são distorcidos para caber na nova regra, já que «saber» não é um acto que ocupa lugar. É sinónimo de «sabedoria». Da mesma forma, o «olhar» pode ser uma referência aos olhos.
Este é o problema de muitos comentários linguísticos: quem critica está, muitas vezes, a fazê-lo por ignorância da forma como as línguas funcionam e não por verdadeira exigência em relação ao uso da nossa língua. Para evitar estas situações, o melhor é sermos cada vez mais exigentes connosco próprios e um pouco mais tolerantes para com os usos linguísticos dos outros, principalmente se esses usos não forem um erro óbvio.
sou brasileiro de familia nordestina e ja ouvi essa expressao “o comer” de alguns familiares, bem como muitas outras expressoes que soam a frances e ingles adaptadas ao nosso sotaque peculiar da regiao.
Toda a vida ( desde que sou mãe)me lembro de estar sozinha na cozinha, em grande azáfama entre tachos e panelas, a preparar a refeição da minha família e em jeito de epílogo bater com um garfo no prato e gritar: ” O comer está na mesa!”
Mas isto sou eu que sou uma bimba….
Não se preocupe, que a «bimbice» está mais vezes nos ouvidos que ouvem do que na boca que fala. 🙂
Claro que detesto a expressão “o comer” e sempre que acho que devo corrijo para “a comida”; pensava estar incorrecto e os seus argumentos não me convenceram muito, limitou-se a dizer que era uma outra forma possível; a inclusão da frase do Pessoa para ilustrar é q me pareceu metida “a martelo”, pois parece-me que em “a fama e o comer” este último é o acto de comer, e não a comida, o objecto do acto.
Veja lá se consegue convencer-me…
Pode ler todos os argumentos no artigo https://certaspalavrasnet.wpcomstaging.com/o-comer-esta-na-mesa/ e ainda no artigo https://certaspalavrasnet.wpcomstaging.com/ora-o-comer-esta-errado-porque-introduzir-regra-inventada-a-pressao/ (acima).
Repare, como explico, que a nominalização de verbos é comum e perfeitamente aceitável em português (e noutras línguas): dizemos «o saber», «o olhar», etc. Como explico de forma detalhada nos dois artigos (e ainda no livro Doze Segredos da Língua Portuguesa), a reacção epidérmica contra «o comer» é uma questão de gosto pessoal e de tabus sociais, não tendo nada a ver com a suposta incorrecção da expressão. No que toca à gramática do português, «o comer» está tão correcto como «o saber».
Quanto à citação de Pessoa, aceitando a sua interpretação, basta dizer que «o comer» tem esses dois significados: «o acto de comer» e «a comida». Expressões com vários significados existem aos magotes em toda a língua. Isso não implica que «o comer» esteja incorrecto.
Espero tê-la esclarecido e agradeço a sua visita a este blogue dedicado à língua portuguesa.