Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Os perigos de levar um bom livro para o pequeno-almoço

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Livros na Bagagem. Capítulo 9.

Tenho andado às voltas com os livros na bagagem, mas os livros não são só para quando viajamos, claro está. Também são para a rotina do dia-a-dia — e o perigo é que, às vezes, dão-nos cabo dessa rotina.

Há dias em que vou pequeno-almoçar perto do escritório, em vez de investir num saudável pequeno-almoço matinal em casa, antes de sair. Não devia, eu sei. Mas não interessa. O problema é quando, por vezes, saio de casa com um livro e levo-o para o tal pequeno-almoço.

Estou com a minha mulher à frente, mas todos sabem que um casamento saudável implica alguns momentos de silêncio comum, um folhear de revista ali, uma leitura acolá, um olhar para o telemóvel aqui, sob o olhar muito crítico de senhoras com um balão de pensamento por cima da cabeça onde vemos escrito «ai, estes jovens, sempre a olhar para o telemóvel».

Estamos os dois à mesa e começo a folhear este livro:

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Folheio-o sem grande preocupação. Já o tinha lido, trago-o comigo apenas por ter sido o que estava mais à mão, quando saí de casa, e procurei rapidamente uma vítima na estante, com o pânico de não querer passar o dia todo sem um livro. Livra: isso é que não!

Estamos à espera da fatal meia-de-leite, e começo a ler vagamente.

De repente, é como se tivesse caído num precipício. Endireito-me na cadeira, atento mais na página, começo a ler com atenção. Porquê? Porque o raio do livro é mesmo bom.

Vejo-me a sorrir perante as invectivas contra a «cidade branca» que um distraído cineasta julgou ver em Lisboa, a sorrir ainda mais com o tigre inexistente da Mauritânia, delicio-me ao percorrer as apertadas ruas ali ao caminho-de-ferro de Entrecampos e ainda olho para um edifício duma fundação habituada a engenharias fiscais, com uma sede pós-modernista que muito deu que falar na Lisboa da altura, tudo salpicado com muita ironia e apartes que não me deixavam largar o livro.

Deixo o pequeno-almoço para trás. A minha mulher termina e olha para mim. Eu continuo a ler. Ela levanta-se e paga. Eu continuo a ler. Ela olha para mim com cara de preocupação.

Lá tenho de cortar com o vício e levantar-me. Há que trabalhar. E custa tanto, com o livro ali ao lado, a chamar por mim. Não se desse o caso de trabalhar com a Zélia, acho que tinha ficado ali a ler mais um pouco e nem me lembrava do resto.

Por isso, amigos, vão por mim: não levem bons livros para o pequeno-almoço. Ainda se arriscam a não aparecer no trabalho.


Bem, no próximo capítulo voltamos a andar de viagem: teremos livros e o ruído dos carros de Paris… Isto, claro, se não me apetecer outra coisa qualquer.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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