No seu recente artigo ‘Quem inventou a letra A?’, o meu amigo e ilustre linguista Marco Neves designou por ‘rabicho’ (no 21.º parágrafo) o sinal diacrítico que surge grafado por baixo da letra ‘a’ em polaco (ą), para a nasalizar. Essa designação despertou a minha atenção e achei-a curiosa, porque os polacos também têm o hábito de, coloquialmente, chamar ‘ogonki’ (rabichos, caudas) a todos os sinais diacríticos – e são vários – que utilizam na sua língua, tenham ou não a forma gráfica de caudas. ‘Ogonki’ é o plural de ‘ogonek’, que por sua vez é o diminutivo de ‘ogon’ (cauda).
Mas quais são então os sinais diacríticos utilizados em polaco e com que letras se combinam?
Os símbolos especiais não são tantos (apenas nove) como por vezes se pensa, sendo portanto muito menos do que, por exemplo, em checo e em eslovaco (onde são 15). E os diacríticos são apenas quatro: cauda em duas letras, traço (em português será mais um acento agudo) em cinco, traço diagonal em uma e ponto em uma. Logicamente, cada símbolo tem uma forma maiúscula e outra minúscula. O quadro seguinte apresenta-os juntamente com os seus códigos ASCII (American Standard Code for Information Interchange), o que pode revelar-se útil se os quisermos digitar num teclado de computador:
O alfabeto polaco é, portanto, composto pelas letras e carateres constantes do quadro apresentado acima, onde também se indica que as letras ‘q’, ‘v’ e ‘x’ dele não fazem teoricamente parte, sendo apenas utilizadas em palavras estrangeiras (em português costumamos dizer o mesmo em relação às letras ‘k’, ‘w’ e ‘y’).
Mas debrucemo-nos mais em pormenor sobre cada um dos símbolos. Por uma questão de melhor ‘arrumação’, começo pelas vogais, passando depois à semivogal ‘ł’ e finalmente às consoantes.
Designa-se geralmente por ‘a z ogonkiem’ (‘a’ com cauda). Trata-se da ‘cauda’ de que falei anteriormente e que deu o nome ao conjunto de diacríticos. É uma espécie de cedilha ao contrário e deve colocar-se do lado direito da letra, e não ao centro (ver a imagem ao lado), como acontece em algumas línguas nativas americanas.
- Serve para tornar nasal a vogal ‘a’, produzindo um som muito semelhante ao do ditongo português ‘ão’, algo entre ‘são’ e ‘som’.
- Exemplos: mąż (marido), oni są (eles são), z tą panią (com aquela senhora), bądź! (sê!), z małą dziewczynką (com a menina pequenina), książka (livro).
- Nunca ocorre no início da palavra.
- Curiosidade: a terceira pessoa do plural do presente do indicativo do verbo ‘ser’ pronuncia-se de maneira muito semelhante em português (são), em francês (sont) e em polaco (są). Estas são aliás as principais línguas europeias em que existem vogais nasais.
- Designa-se geralmente por ‘e z ogonkiem’ (‘e’ com cauda). É a mesma ‘cauda’ do exemplo anterior e também se coloca do lado direito da letra.
- Serve igualmente para nasalizar a vogal ‘e’, produzindo um som semelhante ao da primeira sílaba da palavra portuguesa ‘então’.
- Exemplos: z mężem (com o marido), język (língua), będę czekał (esperarei), chcę (quero), muszę (devo, tenho que), mówię (falo), dziękuję za informację (obrigado pela informação).
- Tal como o ‘ą’, nunca ocorre no início da palavra.
- Observação: na linguagem coloquial, o ‘ę’ em posição final perde geralmente a nasalidade, pronunciando-se como um ‘e’ normal. Daí que, por exemplo, nas palavras ‘będę’ (auxiliar do futuro) e ‘dziękuję’ (obrigado), os dois ‘ę’ se pronunciem de forma diferente. O ‘ę’ de ‘się’ (se, pronome reflexo) raramente se pronuncia como nasal.
- Curiosidade: o conhecido ex-sindicalista e ex-Presidente da República da Polónia chama-se na realidade Lech Wałęsa (e não Walesa, como geralmente se vê escrito). É, no entanto, compreensível a dificuldade em grafar os símbolos ‘ę’ e ‘ł’ em outras línguas.
- Designa-se geralmente por ‘o z kreską’ (‘o’ com traço) ou ‘u zamknięte’ (‘u’ fechado). Ver abaixo a razão desta segunda designação.
- Representa simplesmente o som vocálico ‘u’ que, para complicar as coisas, também pode ser grafado com a própria letra ‘u’. A diferença, por exemplo, entre ‘Bug’ (nome de um rio) e ‘Bóg’ (Deus), ou entre ‘lud’ (pessoas) e ‘lód’ (gelo) só se pode detetar na escrita ou pelo sentido, pois a pronúncia é exatamente a mesma.
- Um pouco de história: há alguns séculos, a pronúncia de ‘u’ e ‘ó’ era diferente, mas foi-se aproximando até ser hoje em dia exatamente a mesma. Esse facto causa confusão aos próprios polacos, que muitas vezes, desconhecendo a etimologia da palavra, hesitam entre as duas grafias.
- Exemplos: Bóg (Deus), lód (gelo), wóz (veículo), pióro (caneta), miód (mel), wśród (no meio de), różne (vários), powtórzyć (repetir), oprócz (além de), również (também), Łódź (terceira maior cidade da Polónia).
- Observação: a designação ‘u fechado’ não tem, portanto, nada a ver com o facto de a vogal ser foneticamente aberta ou fechada, mas refere-se à grafia com a letra ‘o’, reservando-se a designação ‘u otwarte’ (‘u’ aberto) para as palavras que se escrevem com a letra ‘u’, por ter um aspeto gráfico mais aberto. Parece complicado, mas é simples 😀.
- Curiosidade: claro que, para os polacos, a grafia portuguesa de palavras como Polónia e António (com acento agudo) é estranhíssima. Durante o tempo que lá vivi, tiveram sempre alguma dificuldade em compreender por que razão nós chamamos ‘Pólúnia’ 😀 ao seu país e eu insisto em chamar-me ‘Antúnio’ 😀 em vez de ‘Antonio’ ou ‘Antoni’ (versão polaca), como qualquer pessoa ‘normal’ 😀.
- Designa-se geralmente por ‘eł’ ou ‘el z kreską ukośną’ (‘l’ com traço diagonal).
- É um símbolo muito típico do polaco (embora exista em algumas outras línguas) e representa uma semivogal pronunciada como o ‘w’ nas palavras inglesas ‘water’ ou ‘wet’.
- Exemplos: ładny (bonito), łamać (quebrar), miłość (amor), słowo (palavra), ciało (corpo), mały (pequeno), Władysław (nome próprio), Wisła (rio Vístula), Łódź (terceira maior cidade da Polónia), Rafał (Rafael).
- É característico do passado (tanto na forma masculina como feminina) de todos os verbos: on czytał, mówił, poszedł, jadł, pisał, pytał, dał, zamknął (ele leu, falou, foi, comeu, escreveu, perguntou, deu, fechou), ona czytała, mówiła, poszła, jadła, pisała, pytała, dała, zamknęła (ela leu, falou, foi, comeu, escreveu, perguntou, deu, fechou).
- É a única das letras com diacrítico que pode ser dupla, embora isso não seja muito comum. Aparece, por exemplo, em nomes de famílias nobres como Jagiełło ou Radziwiłł.
- A letra minúscula, quando manuscrita, é por vezes grafada com uma espécie de til por cima do ‘l’ (em vez do traço diagonal a meio), pelo que facilmente se pode confundir com um ‘t’.
- Designa-se geralmente por ‘en z kreską’ (‘n’ com traço).
- Representa o som palatal (oclusiva nasal palatal sonora) grafado em português com ‘nh’ (vinho), em espanhol e galego com ‘ñ’, em catalão e húngaro com ‘ny’, em francês e italiano com ‘gn’ e em checo e eslovaco com ‘ň’.
- Exemplos: kwiecień (abril), słoń (elefante), słońce (sol), łaciński (latim), jugosłowiański (jugoslavo), skończyć (terminar), w końcu (no fim), zadzwoń! (telefona!)
- Nunca ocorre no início da palavra nem antes de vogais, sendo nesses casos substituída por ‘ni’: nie (não), niebo (céu), jedzenie (comida), Ania (Aninha).
- Designa-se geralmente por ‘ce z kreską’ (‘c’ com traço)
- Representa uma africada sibilante alvéolo-palatal surda não existente em português, mas próxima do som do espanhol ‘mucho’ ou do inglês ‘much’, embora mais branda.
- Exemplos: cześć (olá), ćwiczenia (exercícios), całość (totalidade), ćma (traça), rezerwować (reservar), wynająć (alugar), wziąć (tomar).
- Antes de vogais, é geralmente substituído por ‘ci’: ‘dla Ciebie’ (para ti), ‘ciało’ (corpo).
- É característico do infinitivo da grande maioria dos verbos: być (ser/estar), robić (fazer), mówić (falar), iść (ir), uczyć czytać (ensinar a ler), etc.
- Observação: não confundir com a africada sibilante pós-alveolar surda (essa sim como o inglês ‘much’, portanto mais forte) representada em polaco pelo dígrafo ‘cz’, como nos seguintes exemplos: cześć (olá), część (parte) częstotliwość (frequência), cztery (quatro), płaszcz (casaco), Bydgoszcz (cidade polaca).
- Curiosidade: em várias outras línguas (por exemplo em checo), o som pós-alveolar atrás descrito é representado pelo símbolo ‘č’, que não existe em polaco.
- Designa-se geralmente por ‘es z kreską’ (‘s’ com traço).
- Representa a fricativa sibilante alvéolo-palatal surda próxima do português ‘chave’ ou do inglês ‘shower’, embora mais branda.
- Exemplos: świat (mundo), świeca (vela), jedenaście (onze), iść (ir).
- Antes de vogais, é geralmente substituída por ‘si’: siedem (sete), sierpień (agosto), się (se, pronome reflexo), siadaj! (senta-te!)
- Observação: não confundir com a fricativa sibilante retroflexa surda (essa sim como o português ‘chave’, portanto mais forte) representada em polaco pelo dígrafo ‘sz’, como nos seguintes exemplos: obszar (área), płaszcz (casaco), Tomasz (Tomás), Szczecin (cidade polaca).
- Curiosidade: em várias outras línguas (por exemplo em checo), o som retroflexo atrás descrito é representado pelo símbolo ‘š’, que não existe em polaco.
- Designa-se geralmente por ‘zet z kreską’ (‘z’ com traço).
- Representa a fricativa sibilante alvéolo-palatal sonora próxima do português ‘gente’ ou ‘viajo’, embora mais branda.
- Exemplos: źle (mal), źrebię (potro), październik (outubro), źdźbło (pá), Łódź (terceira maior cidade da Polónia).
- Antes de vogais, é geralmente substituída por ‘zi’: zima (inverno), zimno (frio), zioła (ervas), ziemia (terra), zielony (verde).
- Observação: não confundir com a fricativa sibilante retroflexa sonora representada por ‘ż’ (ver símbolo seguinte e último).
- Designa-se geralmente por ‘zet z kropką’ (‘z’ com ponto).
- Representa a fricativa sibilante retroflexa sonora normalmente grafada em português com ‘g’ ou ‘j’ em palavras como ‘gente’ ou ‘viajo’.
- Exemplos: żona (esposa), żółty (amarelo), może (pode), duży (grande), bieżący (corrente), straż (guarda).
- Observação: não confundir com a fricativa sibilante alvéolo-palatal sonora representada por ‘ź’ e já anteriormente descrita.
- Observação: encontra-se por vezes a grafia alternativa ‘Ƶ’ no caso da letra maiúscula (em vez de ‘Ż’), especialmente em expressões só com maiúsculas, por exemplo ‘STRAƵ MIEJSKA’ (guarda municipal).
- Curiosidade: em várias outras línguas (por exemplo em checo), o som retroflexo ‘ż’ é representado pelo símbolo ‘ž’, que não existe em polaco.
- Um pouco de história: o símbolo ‘ż’ tem atualmente a mesma pronúncia que o dígrafo ‘rz’, embora a origem etimológica seja diferente. Tal como no caso de ‘ó’ e ‘u’ atrás referido, também há por vezes hesitação entre ambas as grafias. Por exemplo, ‘może’ (pode) e ‘morze’ (mar) só se distinguem na escrita ou pelo sentido. Outros exemplos de ‘rz’: rzadko (raramente), marzec (março), rzeka (rio), przed (antes de). O dígrafo ‘rz’ corresponde geralmente ao checo ‘ř’ (por exemplo Dvořák), embora a pronúncia seja diferente.
E os computadores?
Como se adaptaram os computadores, e respetivos teclados, aos símbolos com diacríticos? As antigas máquinas de escrever polacas (anteriores, portanto, à era dos computadores) tinham todas as teclas correspondentes aos símbolos especiais:
Os primeiros computadores compatíveis IBM começaram a chegar à Polónia na década de 1980, mas com teclado (QWERTY) americano:
A solução mais rápida para os símbolos com diacríticos consistiu em atribuir à tecla ALT direita a função de reproduzir as letras especiais quando premida juntamente com a letra simples correspondente (ALT + a = ą, ALT + C = Ć, etc.). Como a letra ‘z’ tem duas variantes, determinou-se que ALT + z produziria o ‘ż’ e ALT + x produziria o ‘ź’. Este teclado foi designado por ‘Polish Programmers’ e é o mais utilizado até hoje.
O desenvolvimento da tecnologia levou mais tarde à produção de um teclado (QWERTZ) mais especificamente polaco, em que os símbolos especiais tinham teclas específicas (algumas com SHIFT), tal como nas antigas máquinas de escrever:
Mas o mais curioso é que esse teclado (designado por ‘Polish 214’), talvez por ter aparecido com algum atraso, nunca ‘pegou’ verdadeiramente e as pessoas, de tão habituadas que estavam, preferiram continuar a utilizar o ‘Polish Programmers’, o que, como acima referido, acontece até aos nossos dias. Conheci jovens na Polónia que nunca utilizaram nem quase ouviram falar do ‘Polish 214’, apesar de a sua utilização ser teoricamente mais prática.
Sobre esta temática dos teclados, encontrei um artigo bastante interessante cuja leitura recomendo: ‘The curious case of the disappearing Polish S‘. A fotografia da máquina de escrever antiga provém desse artigo.
A necessidade de recorrer repetidamente à tecla ALT para os símbolos com diacríticos leva a que algumas pessoas por vezes não o façam, eliminando assim pura e simplesmente as letras especiais. Claro que se digita mais rapidamente, mas, na opinião de muitos, é incorreto e pouco estético. Para colmatar esse inconveniente, proliferam desde há muito ‘conversores’, cuja função é colocar os sinais em falta ou, por vezes, também o contrário, ou seja, eliminar os diacríticos, por exemplo para introduzir o texto em determinadas aplicações informáticas que os não aceitam.
Na primeira linha da apresentação de um conhecido conversor polaco (Gżegżółka), pode ler-se ‘Gżegżółka to konwerter standardów kodowania polskich znaków diakrytycznych (zwanych potocznie ogonkami)’, o que em português significa ‘Gżegżółka é um conversor de normas de codificação para sinais diacríticos polacos (geralmente designados por caudas).’ O próprio facto de existir este tipo de conversores é certamente curioso e indica uma realidade que, para um português, é estranha e difícil de imaginar.
A frase que atrás traduzi poderia aparecer escrita da seguinte forma simplificada: ‘Gzegzolka to konwerter standardow kodowania polskich znakow diakrytycznych (zwanych potocznie ogonkami).’ Embora contendo vários erros ortográficos, não apresentaria qualquer dificuldade de compreensão para um polaco. Só em alguns casos não muito comuns poderá haver confusão ou dúvidas, por exemplo entre ‘cześć’ (olá) e ‘część’ (parte), em que a única diferença é a nasalização do ‘e’. É como se em português escrevêssemos, por exemplo, ‘A mae da Conceicao vai a rua com a crianca pela mao e o cao pela trela’! Aliás nota-se recentemente em polaco uma certa tendência para a não obrigatoriedade dos diacríticos nas maiúsculas (como acontece em francês), devendo, portanto, ser deduzidos.
Para informação dos mais curiosos, a palavra ‘gżegżółka’ significa ‘cuco’ (o pássaro) e foi escolhida como título da aplicação certamente devido à profusão de diacríticos e também por desafiar (= constituir exceção a) algumas regras ortográficas polacas (de acordo com as regras deveria escrever-se ‘grzegrzułka’). Há outra palavra mais comum, e mais moderna, para o mesmo pássaro (kukułka), o que talvez explique que muitos polacos não conheçam a primeira.
António Callixto foi leitor de português nas universidades de Varsóvia e Helsínquia entre 1979 e 1985 e chefe da unidade de tradução portuguesa do Tribunal de Contas Europeu entre 1986 e 2012, no Luxemburgo.