Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Pasmai, ignaros leitores: o português vem do grego!

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Eu já devia saber que há por aí as mais mirabolantes ideias sobre as línguas e sobre o português em particular. Aliás, diga-se de passagem que há por aí ideias mirabolantes sobre tudo e mais alguma coisa. Também já devia saber que a ignorância se disfarça, muitas vezes, de absolutas certezas.

Mas o certo é que não estava preparado para isto. E até já tinha sobrevivido ao Netunogate!

Encontrei um comentário escondido num recanto do Facebook, comentário esse que pretendia ser uma crítica a este meu texto, um resumo muito rápido sobre alguns pontos da história da língua. Há muitas incertezas, há pontos em que podemos discordar, há muito ainda por saber, mas o certo é que quem estuda esta história, e não são assim tão poucos, tem algumas ideias-base concretas e bem fundamentadas, em que podemos confiar até ao dia em que apareçam novos dados extraordinários que contradigam estas bases sólidas do conhecimento linguístico. A existência desses dados não é impossível, mas é muito improvável — e não há vislumbre deles, diga-se. (Se alguém os encontrar, ficará certamente muito famoso. Mas não vale inventar!)

Bem, uma dessas bases sólidas do conhecimento sobre o português é esta: o português teve origem no latim popular trazido para a Península Ibérica pelos soldados e colonos romanos. Sim, houve certamente uma ou outra influência das línguas pré-latinas, mas a base é, claramente, o latim.

Ah, mas não… Claro que não! Leiam, leiam… (O «chorrilho de disparates e vulgaridades» referido no início é, claro, o meu artigo.)

CHORRILHO

Depois deste comentário inicial, o autor decidiu começar uma luta acérrima com o resto do mundo. O homem está mesmo convencido disto!

Ah, não é bom habitar no berço da civilização ocidental? Ah, não é bom falar grego? Não é bom viver num universo paralelo?

Será que na farmácia vendem doses de noção? Pode ser que dê jeito a quem tem tanta falta dela.

Só uma dica: se os proponentes destas teorias querem mesmo ignorar à força tudo o que se sabe e ter o prazer de chocar os outros com argumentos malucos, aconselho a que pensem em ideias ainda mais avançadas e menos convencionais. Porque não propor a origem extraterrestre do português? Digam que é a única língua que teve origem no planeta Marte. Assim como assim, sempre é mais divertido. Vá, força! Se calhar o português até veio de cometa. Vejam o último Indiana Jones para tirar ideias.

Por outro lado, também podem ler, com muito mais proveito, os livros e os artigos que refiro no meu post:

  • Introdução à História do Português, de Ivo Castro (um livro académico e actualizado, com fartos exemplos concretos).
  • História do Português, de Esperança Cardeira (um livro brevíssimo, editado numa colecção da Caminho sobre temas de linguística).

É um primeiro passo para sair do mundo delirante em que andam metidos. E, se me permitem puxar a brasa aqui ao blogue, aqui fica uma história romanceada dos primeiros tempos da nossa língua.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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5 comentários
  • Aqui há uns anos atrás, tomei conhecimento de uma espécie de seita religiosa /supersticiosa – do tipo daquelas que foram buscar inspiração nas seitas “nova era” / “gnosticas” dos anos 1970s / 1980s – onde os seus líderes gostam muito de afirmar que estudam e conhecem as antigas civilizações gregas, egipcias, mesopotâmicas, romanas, etc. em nome do “estudo do homem”, do seu “autoconhecimento” e da “vida depois da morte”.
    Será esse um exemplo de um comentador que terá passado por uma dessas seitas, tendo criado uma afeição especial pelos gregos em detrimento das outras equipas de futeb… oops, quero dizer, de civilizações?
    Ai estes clubismos…

  • Fiquei em choque com a afirmação de que a Península Ibérica (e SOBRETUDO PORTUGAL!) é o berço de TODA a civilização ocidental. Mas não foi um choque normal de quem é apanhado desprevenido: foi um triste choque, como um déjà vu histórico. Parece que é assumido pela grande maioria das pessoas (mais esclarecidas ou menos) que a génese de muito do que é a nossa cultura de hoje esteve nos gregos antigos. Os filósofos gregos pensaram e debateram sobre todas as grandes questões sobre as quais ainda hoje reflectimos. A sua organização social e as suas ideias políticas continuam a ser visíveis nas sociedades ocidentais dos dias de hoje. E as suas artes foram admiradas, restauradas, repetidas e imitadas ao longo dos séculos, como o auge do bom gosto ocidental.

    Isto tudo apenas para reforçar que, de facto, os antigos gregos são vistos como os criadores da cultura ocidental. E isso tem levado a que certas pessoas, com muita vontade de sangue e com muito pouca noção dos limites do bom senso, tenham criado teorias sobre quem eram realmente os gregos. Adolf Hitler, convicto da superioridade cultural e racial superior dos habitantes do centro da Europa (do espaço vital que quis conquistar), escreveu no Mein Kempf que era impossível que no Sul da Europa se tivessem criado sociedades outrora tão avançadas como os gregos ou os romanos, enquanto no território da actual Alemanha viviam tribos e comunidades muito mais atrasadas, daí concluindo, genialmente!, que sem dúvida os antigos gregos e romanos eram apenas alemães que viviam junto ao Mediterrâneo porque a Alemanha era ainda muito fria nesses séculos idos. Viviam na Grécia e em Itália, aí criaram a civilização ocidental, mas afinal eram alemães.

    E agora leio que não, que afinal os gregos criaram a civilização ocidental mas eram portugueses ou ibéricos, porque o berço de toda a civilização ocidental está aqui. E é por isso que senti um triste choque ao ler tal comentário: os piores nacionalismos vêm destas teorias estúpidas e ignorantes de acharmos que não é possível outros povos criarem coisas boas sem que esses povos sejam, de alguma forma, uma extensão de nós próprios. É falso, é impossível de fundamentar: é resultado de uma visão muito limitada e de muita frustração acumulada ao longo da vida.

  • Uma das razões de haver teorias malucas que se espalham pelo mundo, é exactamente a palavra “espalham”.

    O Marco Neves tem razão em argumentar (visto que foi um artigo dele que deu origem à opinião da outra pessoa), mas ao argumentar e trazer o post do facebook para o seu blog, acaba por aplicar o tal “espalhar” que eu digo.

    Em minha opinião, há coisas que, ao serem ignoradas, morrem por sí.
    Esta é uma delas.

    • Hum, bem possível. Foi uma irritação momentânea, mas acho que tem razão, não vale a pena espalhar… 🙂

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