Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Porque escrevemos “nh” e os espanhóis “ñ”?

OS FALANTES DE DETERMINADA língua estabelecem uma relação tão forte entre os sons e os símbolos que os representam na escrita que nos esquecemos dum facto curioso: esses símbolos podiam ser outros.

Por exemplo, há portugueses que julgam ver no som “nh” uma qualquer característica que obriga a que o som seja representado por duas letras (um dígrafo). Ora, mesmo aqui ao lado, temos os espanhóis a escrever “ñ” e a considerar este “eñe” como uma letra autónoma.

Já os catalães usam “ny” para o mesmo som. Os galegos usam “ñ” na ortografia oficial, havendo uma ortografia diferente, apoiada por alguns movimentos e universidades, que usa o português “nh”.

Quanto ao mirandês, quem tratou de estabelecer uma ortografia única optou por “nh”, à portuguesa.

Este som tem tantas variantes porque não existia em latim. As línguas latinas acabaram por ter de se desenvencilhar sozinhas para inventar uma forma de o escrever.

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NÃO SÓ NESTE CASO, mas em tudo o que toca à ortografia, estamos a falar de escolhas: por vezes, são escolhas que se vão acumulando ao longo de séculos, muitas vezes feitas pelos tipógrafos que pela primeira vez tiveram de passar a escrito manuscritos de autores que usavam opções diferentes conforme a página; outras vezes, são opções conscientes e feitas de forma sistemática por uma pessoa ou por um grupo de pessoas encarregues de estabelecer um ortografia para uma língua. Casos há ainda que estas escolhas se tornam letra de lei, como acontece com o português, que é regulado por leis e tratados internacionais (um dos quais tem criado a polémica que todos conhecemos).

No entanto, mesmo quando inscrita na lei, a ortografia é sempre uma convenção. Teoricamente, uma língua (que é um fenómeno, à partida, oral) poderia adaptar-se a qualquer sistema de escrita. É possível escrever português em cirílico, por exemplo: bastaria estabelecer um conjunto de regras que fizessem a correspondência entre sons e letras (estas regras podem ser mais ou menos complexas; línguas há em que a relação é quase unívoca, como o espanhol, enquanto outras têm uma relação que, à primeira vista, é anárquica, como o inglês).

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PODE SER UMA CONVENÇÃO, mas a ortografia e, em especial, os símbolos que distinguem cada língua acabam por ganhar tal força na mente e no coração dos falantes que, só por si, representam e simbolizam toda uma cultura.

O “ñ” é um símbolo do espanhol e da cultura espanhola, os catalães sentem o “ç” como algo que os distingue dos restantes espanhóis (o Barça é Barça e não Barza, se repararem bem) e nós, portugueses, andamos às voltas com a perda ou salvamento de algumas consoantes.

Estes símbolos especiais permitem ainda distinguir línguas, mesmo quando não conseguimos lê-las. Por exemplo, o catalão, para além da cedilha e do “ny”, tem este símbolo estranho entre os dois “ll”:

 

Já a nossa língua é inconfundível com o seus conjuntos de cedilha e til:

Em conclusão: pode ter sido o acaso que nos deu estas particularidades ortográficas — mas hoje são parte da nossa identidade de falantes e escreventes do português. Uma espécie de bandeira que usamos todos os dias.

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Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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