Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Porque querem os galegos ver televisão portuguesa?

Não é de agora. Em 2014, todos os partidos do Parlamento da Galiza aprovaram uma lei que incentivava o ensino do português e a recepção das televisões portuguesas na Galiza. Porquê?

Nas complicadas negociações para a formação do novo governo espanhol, um dos vários acordos assinados tem uma cláusula curiosa: o BNG (partido galego) exigiu, em troca do seu voto a favor de Pedro Sánchez, que as televisões portuguesas começassem a ser transmitidas na Galiza. Este pedido não é novidade: a transmissão das nossas televisões lá por cima está prevista na Lei Paz-Andrade (em galego: «Lei nº 1/2014, do 24 de marzo, para o aproveitamento da lingua portuguesa e vínculos coa lusofonia»), aprovada em 2014 pelo Parlamento da Galiza — por unanimidade! Todos os partidos, da esquerda à direita, concordaram: querem ver televisão portuguesa na Galiza e querem o ensino do português nas escolas galegas. O certo é que a lei não teve muitos efeitos — o que o acordo assinado pelo BNG e o PSOE prevê é a aplicação das normas já aprovadas (o acordo prevê, na sua versão em galego, «facilitar a execución dos acordos do Congreso e do Parlamento galego para a recepción en Galicia das radios e televisións portuguesas»).

Talvez estes pedidos surpreendam muitos portugueses. Mas são naturais. O galego e o português estão tão próximos que, na Galiza, há uma antiga discussão sobre se são ou não a mesma língua. Sejam ou não, o certo é que um galego compreende um português sem grandes dificuldades (principalmente, diga-se, se o português falar um sotaque do Norte). Incentivar o ensino do português e a transmissão das nossas televisões na Galiza permite aos galegos aproveitar a sua própria língua para comunicar com todos os falantes de português, que ainda são uns quantos.

Para nós, é uma surpresa. Mas não devia ser: a nossa língua tem origem no que já se falava no noroeste da Península no momento em que Afonso Henriques se tornou rei de Portugal. Era uma língua que não se chamava português (os falantes chamar-lhe-iam «linguagem») e que se falava no que é hoje a Galiza e o Norte de Portugal.

Se andarmos uns quantos séculos para a frente e chegarmos aos anos 80 do século XX, o que vemos? Em Portugal, a língua é chamada, há séculos, português e é a língua nacional e oficial para lá de qualquer dúvida (além de ser falada noutros países). Na Galiza, a população continua a falar uma língua que descende da língua que já era falada na época de Afonso Henriques, mas o castelhano foi usado como língua oficial durante séculos. Entre o que se fala em Portugal e a Galiza há, agora, tanto tempo depois, várias diferenças, tanto na fonética, como no vocabulário. Mas o mais extraordinário, tendo em conta o tempo que passou desde que apareceu a nossa fronteira a norte (uma das fronteiras mais antigas do mundo!), é a proximidade entre o que se fala na Galiza e em Portugal.

Pois bem, quando a Galiza ganha autonomia, nos anos 80, a língua torna-se oficial, em conjunto com o castelhano. Perante a proximidade entre galego e português, revelaram-se duas tendências: uma delas assume o galego como uma língua separada do português, defendendo uma ortografia com «ñ» e «ll». Outra tendência defende que o galego deve procurar integrar-se no mundo de língua portuguesa, defendendo uma ortografia com «nh» e «lh». A questão, claro, é mais complexa: há também questões vocabulares e sintácticas (e muitas divisões dentro de cada tendência).

Nos anos 80, ganhou a tendência do «ñ» e do «ll» e é essa a ortografia oficial, usada pelo governo da região, presente nas placas das ruas, ensinada nas escolas. A outra tendência (chamada «reintegracionista») não desapareceu e ainda hoje está activa em muitos meios galegos. Nos últimos tempos, parece haver uma aproximação entre os dois campos. A Real Academia Galega, que defende a ortografia oficial, escolheu Ricardo Carvalho Calero, escritor e académico galego falecido em 1990, o grande nome do reintegracionismo, como nome a homenagear no Dia das Letras Galegas de 2020 — na Galiza, esta é uma honra como poucas. Deixo um vídeo em que, nos anos 80, Carvalho Calero discute «o porvir da língua». É fácil ver como as palavras que Carvalho Calero estão muito próximas das nossas palavras. Basta reparar que diz «a língua» e não «la lengua»…

Para nós, em Portugal, as discussões entre galegos são difíceis de acompanhar. Para muitos portugueses, a dificuldade começa em ouvir o galego. Não só ouvimos muito castelhano quando vamos à Galiza (nas últimas quatro décadas, o uso do galego diminuiu de forma marcada, principalmente nas cidades), como sentimos a estranheza da fonética bastante diferente da nossa. Mas não há que enganar: se não estamos perante a nossa língua, estamos perante a mais próxima das línguas. Tão próxima que há muitos galegos que querem ouvir as nossas televisões… É um espanto — que ainda se torna maior se pensarmos que até a saudade é (também) galega! Sim, também os galegos se afadigaram a discutir a saudade como sentimento muito seu, propalando a sua mítica intraduzibilidade. Enfim, seja ou não intraduzível, o certo é que a palavra existe: em português — e em galego!

(Crónica publicada hoje no Sapo 24.)

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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4 comentários
  • Em minha viagem ao Porto em 2005, perguntei a um cidadão qual a dificuldade de se entender um galego. Sua resposta foi perfeita: A mesma dificuldade para entender vocês do Brasil. Ou seja, segundo este português, galego e “brasileiro” são línguas muito próximas. Em outras palavras, é tudo português.
    Há um livro muito interessante publicado no Brasil com um título sarcástico – ” O PORTUGUÊS QUE NOS PARIU”. Foi escrito por uma jornalista brasileira, neta de portugueses e, como não podia deixar de ser, dedica grande parte dele a D. Afonso Henriques. Quando D. Afonso proclama a independência de Portugal, ele transforma o “dialeto” em língua oficial. E fecha a “estória” com chave de ouro: “Esta é a diferença entre língua e dialeto. Língua tem por trás, protegendo-a, um exército. O dialeto não”. Abraços,

    • Concordo com a semelhança referida entre «este português, galego e “brasileiro”».
      De facto, a evolução do “português brasileiro” orientou-se mais no sentido do “inglês” – por influência americana – (mouse -rato de computador, esporte -desporto …), mantendo a sua base no português arcaico (exportado com a colonização a partir do século XV), cuja raiz assentava no “galaico-português”, ou português medieval, que se manteve, também no território da Galiza, até à primeira metade do século XX.
      As diferenças entre estas duas formas de expressão da língua e o português falado em Portugal, assentam na evolução que se verificou e que não afectou no mesmo sentido aqueles dois países (Brasil e Galiza-Espanha).

    • Acho que hoje pode ser assim, o galego não tem exército próprio (o espanhol não conta) e é por isso dialeto dessa perspetiva militar-estrutural, face ao português. Mas na altura do Afonso Henriques é à inversa: sua mãe a rainha galega tinha exército e forneceu a língua de Corte em que o menino mamou, língua que não deixou de ser a mesma no dia seguinte da independência. Por outras palavras, sendo Afonso um príncipe galego que se torna rei, o quê havia de falar? É mais tarde, quando o galego é perseguido na Galiza pelos poderes castelhanos enquanto floresce em Portugal como língua do império, que a coisa vai mudar.

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