Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Portugueses no jacuzzi

Uma viagem oferecida

Viajar é bom, mas já sabemos que não pode ser de qualquer maneira. Uma coisa é percorrer a Europa de comboio, de preferência com um detective belga a bordo. Outra, bem diferente, é entrar num navio de cruzeiro. Nesse caso, sofremos o desprezo dos que se reputam verdadeiros viajantes, que nos atiram o pior insulto destes tempos: «Olha um turista!» Na escala do prestígio viajante, o passageiro destes hotéis insuflados está pouco acima do excursionista que vai comprar colchões a Badajoz.

E, no entanto, eu não podia recusar: ofereceram-me uma viagem até Itália! Queria lá saber se era de barco ou de Piaggio. Eu queria era ir a Barcelona, a Nice, a Pisa, a Roma… Ainda por cima, estava nos primeiros tempos de namoro e a viagem era para dois!

As circunstâncias em que fui contemplado com tal viagem ficarão para outro dia. Para já, revelo isto: nesse Verão de 2007, a Zélia e eu esperávamos o embarque na Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos — e ao nosso lado esperavam também muitos outros portugueses. Sim, era uma espécie de excursão. Portugal estava ali em miniatura — e em força.

Portugal em miniatura

Devia ter recusado? Claro que não. Tínhamos 27 anos, éramos namorados, queríamos viajar e a viagem dada… Seria uma viagem pouco própria para jovens? Sim, mas pensámos: bastava ignorar o país em miniatura que ia connosco e seria como se fôssemos num iate por esse Mediterrâneo fora.

E, vá, nós também somos parte do país: representávamos ali os casais jovens nesse pequeno Portugal que embarcava em direcção a Itália, com as suas bagagens e impaciências à espera de entrar no navio. Era um Portugal que ia viajar de graça — o que é um Portugal diferente daquele que viaja a pagar. Nos dias seguintes, tivemos um motim português a bordo, uma portuguesa invadiu um palácio no Mónaco e ainda nos perdemos todos pelas estradas de Roma — tudo terminou numa viagem de avião de que não me quero lembrar.

Onde estavam os texanos?

Bem, uma coisa de cada vez. Entrámos no navio, fomos até à cabine que nos foi atribuída e deixámos lá as bagagens. Saímos para o corredor, já zonzos do balançar. À nossa volta, não vimos ninguém, o que era estranho. Segundo o que nos disseram, o navio já navegava há oito dias. Devia estar carregadinho de americanos. Mas, não: estava vazio, não fosse um ou outro português à procura da cabine certa.

Fomos até ao último andar. Lisboa vista dali estava linda, como de costume. Sorri: provavelmente, aquela seria uma das mais belas paisagens de toda a viagem e ainda nem saíra do porto.

Ainda inchado com um certo orgulho patriótico, olhei para trás e vi uma estranha concentração de barrigas portuguesas.

Onde? No jacuzzi, pois então. Parece que os homens portugueses decidiram ocupar os dois jacuzzis que por ali havia antes que os americanos aparecessem. E, a julgar pelas bagagens espalhadas ali ao lado, parece que a primeira coisa que um português faz num navio é mesmo saltar para o jacuzzi em grande estilo e barriga alçada. Foi assim, aliás, que descobrimos o Brasil.

Um aviso no jacuzzi

Ao lado do jacuzzi, estava um aviso que não consegui ler. Ainda tentei aproximar-me para lê-lo, mas a Zélia chamou-me: precisávamos de ir ver como podíamos aceder à Internet. Fomos até ao balcão das informações. Soubemos, para nosso horror, que Internet só havia nos computadores ali ao lado do balcão. Eram tempos obscuros, em que o acesso à internet ainda não era tão importante como a água na torneira da cabine.

Logo a seguir, soaram os avisos: devíamos fazer o exercício de coletes ao pescoço. Fomos à cabine buscá-los, dirigimo-nos ao local designado e assim nos divertimos durante quase uma hora, entre piadas que incluíam quase sempre alguma referência ao Titanic.

Ouvimos mais sinais sonoros: a partida estava para breve. Ah!… Como seria partir de Lisboa a navegar, em direcção ao mar oceano e às aventuras sem fim duma semana para recordar?

Partida de Lisboa

Era assim: à nossa frente, Lisboa. Atrás de nós, portugueses a marinar no jacuzzi. Sim, os mesmos homens continuavam a sentir a água a borbulhar pelo corpo. Em redor, outros portugueses em cuecas tentavam convencê-los, com a força do olhar, a desamparar aquela loja.

Aproximei-me então do tal aviso que me intrigara horas antes: qual poderia ser o perigo dum jacuzzi? Perigos não havia, apenas isto: «Não permanecer no jacuzzi mais do que 15 minutos.»

Entretanto, lá em baixo, os americanos já embarcavam à pressa, de compras na mão e susto nos olhos: não queriam ficar em terra! E não ficaram. Pouco depois, vimos abrir-se uma fenda entre o navio e o cais e lá navegámos dali para fora. O navio saía de Portugal, mas Portugal não saía do navio.

Notei então alguns tripulantes a coçar a cabeça: como dizer aos portugueses de molho que deviam sair dali?

Não precisaram de pensar muito: quando correu a notícia que estava na hora de ir comer, os portugueses engelhados saltaram da pobre piscina borbulhante e quase atropelavam, aos pingos, um grupo de texanos. Um dos americanos ainda perguntou ao amigo que língua bárbara era aquela.

O sol já se punha. A bombordo, as míticas terras da Costa da Caparica. Mal sabia eu o que nos esperava naquela louca semana.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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6 comentários
    • Já trabalho para que a impaciência não dure muito… Mas isto de descrever motins a bordo tem o seu quê de complicado!

  • “Segundo o que nos disseram, o navio já navegava há oito dias.”
    É impressão minha ou há uma incongruência de tempos entre os verbos dizer e haver (disseram – há)?

    • O verbo «haver», neste sentido temporal, é usado muitas vezes no presente, mesmo no caso em que parece fazer sentido um pretérito. É um verbo que não gosta de se comportar bem… (A concordância com o sujeito também tem os seus quês.) Nesta frase em particular, só de forma muito artificiosa escreveria ali um «havia».

      • É um facto que é costume.
        Mas a minha dúvida mantém-se: apesar disso é gramaticalmente correcto?
        Também é verdade que, com o tempo, o uso impõe – e disso se faz evolução na língua – o uso de terminologia inicialmente incorrecta. Porém, não me parece que isto se aplique aos tempos verbais.
        Mas, claro, não sou linguista, apenas adoro a minha língua.

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