Qualquer tradutor irá receber, mais cedo ou mais tarde, uma reclamação. Numa empresa de tradução como aquela em que trabalho, em que temos largas centenas de projectos por ano, mesmo que 99% de projectos corram muito bem, vamos ter sempre algumas dessas mensagens difíceis por ano.
Acontece, claro. Há vezes em que o cliente tem razão e outras em que não tem razão. Como tudo na vida, é complicado.
Ora, isto tudo para vos falar do problema das traduções para inglês em Portugal.
Em geral, as traduções para inglês devem ser feitas por tradutores nativos de língua inglesa. Tendo em conta isto, será estranho pensar que há um grande número de reclamações feitas por clientes portugueses relativas a traduções feitas por tradutores britânicos — e por causa de questões de língua inglesa!
Porquê este fenómeno?
Tal acontece porque (isto é uma teoria minha que mereceria um estudo mais aprofundado), no que toca ao português, os clientes sabem, de facto, avaliar o texto e, assim, reconhecem quando o trabalho está bem feito.
No caso das outras línguas, o cliente sabe que não sabe e, por isso, confia um pouco mais no pobre tradutor.
No que toca ao inglês, o cliente sobrevaloriza os seus próprios conhecimentos e, assim, acaba por avaliar o inglês dos tradutores nativos pelo prisma do seu inglês aprendido em Portugal e num âmbito restrito. Pode ser um inglês óptimo, mas dificilmente será o inglês dum tradutor nativo.
Ou seja, no caso das traduções para inglês, quem gere projectos em Portugal está bem tramado. Os clientes pedem-nos as traduções não porque não se julguem capazes de as fazer, mas porque não têm tempo. Se tivessem, claro que fariam eles próprios o trabalho — e, ui, quão melhores seriam as traduções feitas pelo próprio cliente.
Ora, antes de mais: há um ponto onde os clientes nos levam vantagem óbvia — o conhecimento da terminologia específica da sua empresa. Sim, porque, às vezes, mesmo dentro de cada sub-sub-sub-área da sub-sub-área da sub-área da área técnica em que estamos a trabalhar, encontramos termos diferentes dependendo da empresa. Uma chatice, é o que é.
Solução? Convencer o cliente a ajudar-nos a gerir a terminologia da sua empresa. Por outras palavras: criamos glossários com ajuda do cliente e aplicamo-los nas traduções. Alguns clientes suspiram de alívio. Outros dizem: mas então V. Exas. não sabem de cor e salteado os termos que usamos aqui dentro? Esta vida de tradutor é animada.
Por outro lado, muitas vezes, aparecem reclamações das traduções para inglês por esta razão: algum colega do cliente lê o trabalho do tradutor e diz ao cliente que ele faria as traduções doutra forma. E, pronto, está o caldo entornado. A terminologia está bem, mas o colega faria doutra maneira. Logo, o tradutor fez um mau trabalho. Devia ter adivinhado a exacta tradução que teria saído da cabeça do colega.
Isto acontece porque:
- O cliente confia mais no colega do que no tradutor.
- O cliente tem na cabeça o mais pernicioso mito sobre a actividade de tradução que por aí anda: a ideia profundamente errada de que, para cada frase, só pode existir uma tradução correcta.
Esta ideia parece tão absurda para qualquer pessoa que trabalhe em tradução que nos esquecemos que há muita gente por aí que acredita piamente nisto.
Não me interpretem mal: para cada frase no original, existem muito mais traduções incorrectas possíveis do que traduções correctas. Não vale tudo, muito pelo contrário.
O que vale é isto: dois tradutores diferentes fariam, certamente, duas traduções diferentes — e as duas podem estar correctas (e também podem estar ambas erradas, ou apenas uma delas, claro está).
Ou seja, quando pomos lado a lado um tradutor profissional e um colega do cliente que passou uma temporada em Inglaterra e pedimos aos dois para traduzir um texto, os dois farão duas traduções diferentes. Pode acontecer que ambas estejam correctas. Pode até acontecer que o tradutor tenha feito um mau trabalho — mas é bem provável que o tradutor tenha feito um bom trabalho e o colega do cliente não perceba que lá por usar outras frases em inglês, tal não significa que o tradutor britânico não saiba escrever na sua própria língua.
O que fazer?
Bem, podemos queixar-nos e ficar por aí.
Ou podemos tentar perceber se de facto a tradução tem problemas ou não (é difícil aceitar críticas alheias, mas o tradutor tem de ser honesto consigo próprio).
Quando o erro é do cliente, podemos tentar explicar o que se passa. O cliente pode acabar por nos ajudar — ou revelar-se um mau cliente, o que é sempre bom saber.
De forma mais prática, podemos tentar melhorar todos os dias, o que pode significar adaptarmo-nos às preferências daquele cliente em particular.
Em suma: podemos sempre aprender com os erros: os nossos — e os do cliente.
Aprender com os próprios erros e com os erros de outros. Sempre! Humildade é o que não pode faltar a ninguém, mas parece que é um artigo que anda em falta no mercado. Grande abraço
Anita
Interessante este texto. Sou obrigado muitas vezes a escrever relatórios em inglês. Outras vezes em português. Raras vezes pedem-nos relatórios bilíngues. Sempre opto por fazer o primeiro relatório em inglês e, se necessária a versão vernacular, opto em “traduzi-la” do inglês, pois o contrário ser-me-ia muito difícil, visto conhecer muito melhor o nosso rude e doloroso idioma. Acho que há que se concentrar num aspecto das traduções que é o estilo de cada documento. Uma tese universitária é uma coisa totalmente diferente de um relatório de engenharia, por exemplo. Assim um adjetivo pomposo na tese ficaria muito mal no relatório. Uma vez recebi um relatório escrito por um belga que dizia que o índice de rejeições de soldas em uma caldeirão era excessivamente alto. O infeliz usou o adjetivo “abominable”, que além de causar revolta nos destinatários não cumpriu o objetivo. Até hoje não sei se era por desconhecimento do inglês, algum falso cognato em francês ou pura má fé. De fato, abominável foi o trabalho dele.