Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Qual é a origem da expressão «amigos de Peniche»?

Não é das expressões mais correntes. Mas ainda se ouve por aí… Ora, como sou de Peniche e não quero ser amigo da onça, aproveito para contar a origem da expressão. Só que decidi ser um pouco malandro e, em vez de dizer o que há a dizer em poucas palavras, ofereço aos leitores deste blogue o episódio d’A Baleia que Engoliu Um Espanhol onde refiro os «amigos de Peniche».

1. Vêm aí os ingleses

Corria o ano de 1589. A armada inglesa de Francis Drake descia pela costa portuguesa, depois de ter acostado à Corunha, com muito prejuízo de vidas, jóias e honra dos habitantes da cidade, que ficaram à mercê daqueles ingleses, irritados sobremaneira pelo atrevimento da Armada Invencível uns tempos antes.

Sim: a Armada Invencível, essa tentativa do Senhor do Mundo – Filipe II – de se casar à força com Isabel I de Inglaterra. Tentativa que deu no que todos sabemos: a armada que saíra de Lisboa, a mais formosa das cidades espanholas, deu de caras com os navios ingleses em mares revoltos e a aventura não correu bem. A armada espanhola, que incluía alguns dos melhores galeões de guerra portugueses, não conseguiu conquistar Inglaterra e a rainha Isabel I manteve-se solteira e virgem – pelo menos no papel.

Pois agora era a vez de os ingleses retribuírem o feito e virem maçar os espanhóis. E que melhor maneira de irritar a alma castelhana do que tentar surripiar-lhe uma parte do reino? Os ingleses traziam na bagagem D. António, o Prior do Crato. Queriam fazê-lo desembarcar em Portugal, para que este recuperasse o trono, o que interessava sobremaneira à Coroa inglesa, que assim se vingaria da armada impertinente, reduziria o império espanhol e recuperaria o velho aliado, por ora engolido nos domínios de Filipe.

Ao comando, vinham o almirante John Norris e Francis Drake – que os espanhóis chamavam El Draque. Pelo demais, a armada inglesa era composta por mercenários, pequena nobreza desocupada e alguns holandeses, todos unidos na irreprimível vontade de dar traulitada a espanhóis.

Já na costa portuguesa, os soldados avistam o navio Swiftsure, onde vinha o conde de Essex, Robert Devereux. Devereux tinha sido, até há poucas semanas, o amante de estimação da rainha Isabel. Mas o jovem, farto das manias da senhora e das intrigas do palácio, decidira partir à aventura – quisera então juntar-se à tal armada inglesa que se estava a juntar em Plymouth para vir por aí abaixo vingar a Armada Invencível.

A rainha não deixou: enviou ordens expressas para que Francis Drake devolvesse Robert Devereux, que se devia apresentar às ordens da soberana para os serviços que lhe fossem atribuídos.

Drake informou Isabel I que o conde não estava em Plymouth e não fazia ideia onde poderia encontrá-lo.

Com a soldadesca a ferver de ódio ao espanhol e a possibilidade bem real de a rainha mandar abortar a expedição só para garantir que o seu querido não fugia, Drake decide avançar. Seguem então ingleses, holandeses, um punhado de portugueses – todos em direcção à nossa península.

Devereux andava a brincar à apanhada – sabia muito bem o que queria: juntar-se à armada quando estivesse longe de Inglaterra e da sua cansativa rainha.

Pois foi já na costa portuguesa que o conde deu ares da sua graça, aparecendo em glória, de peito alçado e sorriso imenso, na proa do navio Swiftsure, galgando o mar e brilhando ao sol português.

Os soldados ingleses, quando perceberam quem era aquele nobre que agora se juntava à armada inglesa, aplaudiram, assobiaram e sentiram o coração a bater mais depressa – tinham ali mais um herói inglês pronto a vingar o atrevimento espanhol.

O conde adorava a atenção – Devereux era um homem orgulhoso, aventureiro, de coração na boca… Francis Drake suspirou quando viu o Swiftsure a passar -lhe ao lado. Não queria ir contra as ordens da rainha – mas ali, o que podia fazer? Mais valia aproveitar a ajuda daquele conde impetuoso para roubar Portugal aos espanhóis.

2. Três corsários a conspirar

Drake, Norris e Devereux juntam-se então para planear o ataque às terras portuguesas. D. António dissera-lhes que a conquista de Lisboa seria fácil – mas os ingleses decidem aportar em Peniche, um pouco a norte.

Por que razão quiseram desembarcar em Peniche e não seguir directamente para Lisboa? Não sei. Talvez tivesse sido o próprio D. António a insistir, para pôr um pé em terra o quanto antes. O pretendente era um aventureiro e estava impaciente por ser rei na sua terra – mesmo que fosse apenas nessa quase ilha mal ligada ao continente. Ou então terá sido a notícia de que estava fundeado no porto de Peniche um galeão espanhol a abarrotar de ouro. Mas o mais provável é que tenha sido tudo isso e muito mais – afinal, interessava aos ingleses ter mais terra para saquear e era difícil aguentar aquela trupe de mercenários, cheios de fúria e ali encerrados nos barcos há muitos dias.

Fosse porque fosse, os ingleses chegaram-se ao pé de Peniche, pelo sul, e atacaram de imediato a guarnição, que era comandada por um tal de Araújo – este militar, bem português, não teve alternativa do que cumprir a sua obrigação e disparar contra os ingleses que traziam o seu rei.

No navio donde assistia a esse primeiro lance da batalha, Francis Drake virou-se para D. António:

– Não me tinha dito que aquela fortaleza estava nas mãos dum amigo seu?

D. António encolheu os ombros:

– Sim, o capitão Araújo é bom e velho português. Mas não quer certamente que ele revele já a sua posição, pois não?

Francis Drake fez um gesto de impaciência. Isto começava bem, não havia dúvida. Olhou em volta, para a costa que o rodeava. Havia ali umas ilhas ao fundo que não pareciam interessar por aí além… Falésias, praias…

Reparou então, um pouco a sul, na praia da Consolação. O velho corsário percebeu que aquela praia, à beira da baía, estava desguardada – pois, certamente, os espanhóis não achavam possível que, com as marés assim, algum almirante quisesse ali aportar.

Foi mesmo ali que Drake mandou a esquadra desembarcar. Eram milhares de ingleses, pontuados de alemães e holandeses, todos sedentos de matar o seu espanhol.

3. Um conde de espada alçada

O primeiro a avançar foi Robert Devereux, que saltou para a água, aos gritos, espada alçada, num gesto que os portugueses, do navio, reputaram de um tanto ou quanto ridículo – pois a praia estava vazia.

Não interessa: a guerra também tem o seu quê de ridículo – e a verdade é que depressa apareceram umas centenas de soldados de Filipe II, que, no entanto, nada puderam contra os milhares de ingleses que desembarcaram logo a seguir ao amante da rainha.

Quando a praia já estava tomada, desembarcaram, com pompa, Francis Drake e John Norris, para assinalar a tomada daquelas terras por Isabel I.

Um soldado espanhol que ali estava deitado, ferido duma estocada holandesa, viu o corsário e não conseguiu deixar de gritar ¡El Draque!

Sim, Drake era uma assombração dos veteranos da Armada Invencível – e tanto medo teve do que viu que o espanhol julgou que aquela visão só podia significar uma coisa: Portugal deixaria de ser espanhol. Se Francis Drake estava à frente daquela expedição, nada podiam os exércitos ibéricos fazer para evitar a derrota.

Esse soldado espanhol de pouca fé morreu minutos depois. Nunca veio a saber que aquela expedição ali desembarcada, que libertou Peniche em poucos minutos, nada conseguiria fazer dali para a frente. Portugal continuaria espanhol, os ingleses voltariam com o rabo entre as pernas para a sua ilha – e todo o episódio seria recordado no futuro não como o início da libertação portuguesa e do reinado de D. António, mas apenas como a origem antiga da velha expressão «amigos de Peniche» – pois que os amigos de Peniche são esses aliados que pouco mais fazem do que saquear e dar de frosques quando a batalha aperta.

A história, claro, continua. Estes ingleses ficam a saber que há um tesouro em Peniche, aparece um salteador (ou serão dois?) e, depois de muitas voltas e reviravoltas, as tropas avançam para Lisboa entretidas num belo saque das vilas e aldeias portuguesas (com amigos destes…). Ah, Devereux acaba de cabeça cortada! Mas para saber tudo isso há que ler o resto do livro.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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5 comentários
  • Nom comprendo que perda de honra foi para os corunheses a vitória de Maria Pita sobre Drake: abondou umha mulher galega para fazer fugir ao coitadinho!. Que despois do fracasso da Contraarmada (18.000 ingleses mortos de 23.000, 1.900 deles na Corunha) foi castigado pola sua rainha Isabel: 6 anos sem navegar, retido em Plymouth.

    • Hei-de investigar e contar a história do que aconteceu na Corunha (deixou-me curioso). Este início de conto aqui deixado é parte de um livro de histórias vistas pelo lado português, incluindo tudo o que esquecemos e não sabemos. Não é um livro de História. Mas fica a promessa de olhar para essa história bem interessante! 🙂

  • Gosto imenso dos seus textos e das descobertas/”acertos de língua” que vou fazendo através deles.

    Tenho uma dúvida. Escreve no texto acima, mais do que uma vez, “irritados sobremaneira “. Eu sempre disse “de sobremaneira”. Está errada, presumo, a forma como digo e escrevo!

    Muito obrigada pelo esclarecimento que fará o favor de me dar.

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