Lençóis, livros e traduções
Há umas noites, depois de contar uma história e aconchegar os lençóis ao meu filho mais velho, que sorriu de olhos já fechados, sentei-me aos pés da cama dele a ler o livro que tinha entre mãos.
Era The Bookseller’s Tale, de Martin Latham, um excelente exemplo de livro sobre livros. Estava a gostar (muito), mas de repente travei numa frase que me irritou.
Cada pessoa terá as suas impaciências. No meu caso, suspiro quando alguém afirma que esta ou aquela palavra é intraduzível sem grandes demonstrações de tal intraduzibilidade. Aliás, quase sempre, a tradução vem logo a seguir, numa descrição muito particular do significado da palavra — ora, uma descrição palavrosa não deixa de ser uma técnica de tradução.
Neste caso, o autor afirmava que a palavra «cosy», do inglês, era intraduzível. Ora, estando a escrever em inglês sobre uma palavra inglesa, o que quereria ele dizer com intraduzível? Intraduzível para que língua? Na mesma frase, dizia que a palavra terá vindo das línguas nórdicas; talvez seja traduzível pelo menos para essas línguas, disse-lhe eu numa daquelas conversas que às vezes temos com os livros (que às vezes até respondem, mais à frente)…
Pus o livro de castigo durante uns minutos e olhei para o meu filho, já a dormir e bem aconchegado aos lençóis. Lá está: «cosy» pode ser traduzido por «aconchegante». Sim, é preciso mais letras, temos de escolher entre várias opções («acolhedor»?; «confortável»?), nenhuma delas é exactamente a mesma coisa. Mas uma tradução nunca é a mesma coisa: as palavras escapam nas margens, podem ser traduzidas de várias maneiras, mudam (traduzir é mudar). Isto não é intraduzibilidade; é antes a própria natureza da tradução.
A língua aos saltos na boca
Pois bem, a palavra inglesa levou-me à palavra portuguesa «aconchegar». Se os ingleses conseguem encontrar em «cosy» uma origem viquingue, pergunto: de onde terá vindo a nossa palavra?
Dizem-nos os dicionários que terá vindo da palavra «complicāre» do latim. Este mesmo verbo também nos deu, como é fácil de ver, «complicar».
Como é isto possível? Qual é a ligação entre «aconchegar» e «complicar»? Já lá chegamos. Antes, tentemos perceber o caminho que os sons da palavra fizeram.
O <pl> das palavras latinas foi triturado de forma muito particular neste lado da Península Ibérica. Ao longo dos séculos, a língua dos falantes, puxada pelo [l], foi-se encostando ao palato, acabando por se transformar no som que representamos com o <ch>, que tanto pode ser [tch], em certas zonas do Norte e na Galiza, como o mais simples [ch]. O [p], coitado, acabou esquecido.
Este fenómeno aconteceu em várias palavras, como «chuva», que veio de «pluvĭa», ou «chegar», que veio de «plicāre». Como é que «dobrar» deu em «chegar»? Há várias teorias, entre elas a ideia de que, ao chegarmos ao porto, dobramos as velas. Parece-me uma explicação possível, embora demasiado bonitinha. Não temos maneira de a comprovar.
O <pl> tornou-se <ch> e o <c> tornou-se <g> — a transformação do som [k] do latim num [g] também é muito normal. Foi este caminho que a palavra «complicare» fez, na boca das gerações, até se transformar em «conchegar».
O verbo assim despido do <a> inicial aparece em vários textos em português e ainda está nos dicionários. A certa altura, «conchegar» cresceu e ficou «aconchegar». Também é normal em português: chama-se, tecnicamente, prótese. Algumas das palavras com prótese são parte do padrão da língua, outras nem por isso: «aconchegar», «assobiar», «alevantar» (como os valores mais altos que se alevantam), «alembrar», «amandar»… Seja no registo popular ou formal, o mecanismo é o mesmo.
No caso do «aconchegar», o verbo sem prótese perdeu-se. Hoje, todos aconchegamos, quase ninguém conchega.
Palavras complicadas
Então e o significado? Qual é a ligação entre «aconchegar» e «complicar»?
Em latim, «complicāre» — que inclui o «plicāre» que deu origem ao nosso «chegar» — assumia vários significados, conforme o contexto (é o que acontece em todas as línguas). Um desses significados era algo como «dobrar para juntar» («com+plicāre», dobrar com) ou «enrolar»…
Um tecido liso complica-se em várias pregas, por exemplo. Daqui, o cérebro do falante, sem pedir autorização a ninguém, dá um salto para um assunto que se complica… Foi deste significado inicialmente metafórico que surgiu a palavra «complicar», importada directamente do latim, sem a mastigação que «aconchegar» sofreu na boca dos falantes. Ficámos com duas palavras bem distintas, com a mesma origem, mas uma história diferente.
«Aconchegar» vem desse «dobrar para juntar», com um significado que sublinha o «juntar» — se pensarmos no aconchego dos lençóis a uma criança que adormece, até encontramos a dobra do lençol. A partir do verbo, criámos o nome «aconchego» e o adjectivo «aconchegante».
As palavras que usamos são um aconchego (são nossas), mas têm histórias complicadas, com sons que mudam e significados que se vão esticando e encolhendo para acompanhar o que queremos dizer uns aos outros.
Ali, sentado na cama do meu filho, decido tirar o tal livro de castigo. Olhei de novo para a frase que me irritou. Percebo, então: naquela página, «intraduzível» quer dizer apenas «com um significado tão útil e preciso que parece impossível que alguém invente a mesma palavra duas vezes».
No fundo, as palavras que muitas pessoas consideram intraduzíveis são palavras certeiras. É isso que sinto ao pensar no verbo «aconchegar» — não é tão bom termos uma palavra para descrever o gesto de aproximar os lençóis a uma criança que adormece?
Enfim, perdoei o livro. Fiz bem. É muito bom e mereceria ser traduzido para português. Faz parte de um género complicado: livros que se dobram sobre si próprios. Não importa: são leituras que dão a quem gosta de ler um aconchego particular.
Um excelente 2022 — com muitas conversas e muitas leituras.
*
Notas: a origem de «aconchegar» encontra-se, por exemplo, nos dicionários da Porto Editora. Alguns autores, como Antonio Carlos Silva de Carvalho e Marcelo Módolo, consideram que «aconchegar» terá derivado de «chegar», já no português, como descrevem neste artigo. Sobre a prótese em palavras como «alevantar», tive uma conversa com Sam The Kid há uns meses. Volto a lembrar o livro recomendado: The Bookseller’s Tale, de Martin Latham. Este texto foi também publicado como crónica no Sapo 24.
Um excelente ano 2022, com muita saúde e porque não, com alguma alegria também! Bem precisamos…
Um forte abraço
Um excelente ano também para si!
Cocho e acocho é “lugar de abrigo” en galego. E aconchegar “juntar, aproximar-se”
Moi interesante a historia de aconchegar.
O curioso é que eu, por etimoloxía popular, sempre pensei que viría de cuncha.Polo de acobillarse coma dentro dunha cuncha, ou “conchega” que din nalgúns sitios…
Não sei se esta observação será útil, mas em asturo-leonês existe também a palavra ACONCHEGAR com um significado ligeiramente diferente.Embora pudéssemos dizer aos nossos amigos, numa cabana nas montanhas, “Aconchegáivos, que quitamos asina’l fríu”, o significado genérico é congregar, reunir pessoas ou gado. «Los conceyales de la oposición aconchegáronse pa face-y una moción de censura al equipu de gobiernu».
Como sempre, seus textos explicando as origens, são originais… Parabéns! A tempo: podemos dizer que o aconchego dos lençóis, numa cama confortável e em outras várias boas companhias, nos enche de prazer. Aliás, esse nosso PRAZER (placere) poderia ser por vós comentado, mas com sua original forma de conversar sobre etimologia… Só uma sugestão!
Muito obrigado! Tentarei falar dessa palavras em breve.