Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Qual é a origem do nome do Porto?

Como ando por estas paragens, hoje apetece-me conversar um pouco sobre o nome do Porto — não só sobre a sua origem, mas também sobre o artigo que temos de usar sempre que queremos falar da cidade que deu o nome ao país.

Pôr ou não pôr o artigo — eis a questão

Pois bem: vamos dar uma pequena volta por um recanto da gramática da nossa língua. É uma viagem um pouco mais comprida do que o esperado para, por fim (prometo!), chegarmos à origem do nome do Porto…

Repare: quando falamos do Porto, não podemos deixar de usar o artigo definido. Falamos do Porto, vamos ao Porto, dizemos que o Porto é uma grande cidade. Tal acontece com mais uns quantos nomes de terras portuguesas: a Guarda, as Caldas da Rainha, a Figueira da Foz, o Barreiro, e por aí fora (há ainda alguns nomes estrangeiros em que fazemos a mesma coisa, como a Haia).

A maioria das cidades, no entanto, não leva artigo atrás: falamos de Faro, vamos a Leiria, dizemos que Lisboa é uma grande cidade. Nada de artigos. (Diga-se que há uma construção particular em que temos de usar o artigo em todos os nomes de cidades — quando queremos especificar, por exemplo, uma Lisboa de entre muitas: a Lisboa da minha infância, o Faro que eu conheci.)

Há alguma regra clara para definir que cidades levam artigo e que cidades ficam despidas? Nem por isso. Há uma certa tendência para que os nomes com uma ligação clara a um nome comum tenham o artigo: é o caso do Porto, da Figueira da Foz, da Guarda e mais uns quantos. Mas há tantas excepções… Ponte de Lima tem uma ponte lá no nome e não leva artigo (e é apenas um de muitos exemplos).

Tenhamos pena de quem aprende português em adulto: tem de decorar quais os nomes de terras que levam artigo e quais não levam. É uma das muitas arbitrariedades da nossa gramática — uma das outras arbitrariedades é saber de que género são os nomes comuns — um inglês fica sempre espantado por perceber que, para nós, uma árvore é feminina e um arbusto é masculino. Por que carga de água?…

A dificuldade em aprender uma língua é mesmo esta: não há uma razão lógica para tal, mas um estrangeiro que queira aprender a nossa língua terá de decorar que Porto leva artigo e Lisboa não (e que «Porto» é um nome masculino e «Lisboa» é um nome feminino)… A gramática tem muito de arbitrário — e todas essas arbitrariedades são óbvias para quem fala a língua desde a infância e muito pouco óbvias para quem a quer aprender já adulto. Todas as línguas são assim — as arbitrariedades é que são diferentes de idioma para idioma…

Antes de avançarmos para a origem do nome, peço que repare num último pormenor sobre o tal artigo: quando escrevemos o nome da cidade isoladamente — numa lista ou numa placa da estrada — deixamos o artigo de fora. Assim, ao viajar de Lisboa para o Porto, as placas anunciam «Porto». Não nos aparece «O Porto». A nós, parece absurdo pensar que poderia ser doutra maneira. E, no entanto, se continuarmos mais para norte e passarmos a fronteira com a Galiza, encontramos os mesmíssimos artigos nas placas da estrada: «A Coruña», «O Grove», «A Toxa»… Isto, claro, nos nomes de terras que levam o artigo — que o galego também põe o artigo numas terras e tira noutras sem pedir autorização a ninguém.

Então e a origem do nome?

A origem dos nomes das terras está, quase sempre, envolta nalgum mistério, que é uma palavra bonita para se usar quando não sabemos alguma coisa. E, de facto, é muito difícil saber por que razão alguém decidiu chamar assim e não assado àquele local e por que razão um nome pega e outro nem por isso… Na terra fértil deste desconhecimento nascem, muitas vezes, as ervas daninhas das teorias estrambólicas.

Quanto ao Porto, tudo indica ter origem na designação latina Portus Cale. Esta designação deu o nome ao país — e por isso dizemos que o Porto deu o nome a Portugal — e ainda à cidade, que tem um nome que descende da primeira parte do nome latino. Ou seja, o Porto tem um nome que descende da palavra latina «Portus», que significava, entre outras coisas, «porto» (as palavras mudam, mas nem sempre…).

Que «Porto» vem de «portus» não será surpreendente. Já será um pouco mais interessante saber que a palavra latina terá vindo da palavra proto-indo-europeia «*pertus» (o asterisco indica que é uma palavra reconstruída através do processo comparativo entre várias línguas, como explicado, por exemplo, aqui). Este «*pertus» — uma palavra que terá sido usada há uns bons 5000 anos — significaria «passagem» e deu origem ao «portus» latino, ao «fjord» norueguês e ao «firth» do inglês (por exemplo, em «Firth of Forth»). Há mais palavras com esta origem pelas línguas indo-europeias, como, por exemplo, o «pol» persa, que quer dizer «ponte».

Ou seja: quando um iraniano fala duma ponte, usa uma palavra com a mesma origem remota do nome do Porto. As palavras do nosso mundo enredam-se de maneira muito peculiar…

O Porto noutras línguas

Andamos de viagem — começámos no artigo que pomos antes do nome, olhámos para a origem do nome e agora avançamos para as viagens que esse nome fez noutras línguas.

Comecemos pelo espanhol, onde o artigo se colou ao nome e ficou «Oporto» — um processo comparável ao que fazemos com inúmeras palavras árabes, a começar pelo nosso Algarve, que também junta o artigo à palavra original.

Já em inglês, vemos por vezes o mesmo «Oporto», mas também a versão mais próxima da portuguesa: «Porto». Uma e outra, claro está, pronunciadas à inglesa.

Estes nomes estrangeiros das cidades designam-se por «exónimos». «Londres» é o exónimo português de «London», tal como «Lisbon» e «Oporto» são exónimos ingleses das nossas duas maiores cidades. Mais uma vez, entramos no campo da arbitrariedade: há cidades com nomes em várias línguas, outras em que tal não acontece. Há, no entanto, uma tendência: dificilmente uma cidade pequena e pouco conhecida terá nomes diferentes noutras línguas. É quase uma marca de honra que outras línguas dêem nomes diferentes a uma determinada cidade — quer dizer que, em determinada época da História, o nome foi tão usado que os falantes o adaptaram à sua língua…

Olhemos de novo para o nome da cidade em inglês: será «Porto» ou «Oporto». Já o vinho, que em português leva o nome da cidade, em inglês tem um nome ligeiramente diferente: «port wine». A origem do nome é, claramente, o nome da cidade. No entanto, é uma bebida tão importante para a cultura britânica que ganhou um nome comum, em minúsculas.

E, pronto, foi uma pequena viagem a bordo do nome do Porto — que sirva de pequena homenagem a esta cidade que gosto tanto de visitar.

(Crónica no Sapo 24.)

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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28 comentários
  • E aproveitando o andamento, aqui fica a dica para todos os que, inocentemente ou até nem por isso, se referem à vila piscatória de Alvor como “O Alvor”…
    Não… Não o façam.
    É mesmo só Alvor. 😉

  • A mençom a Ogrobe é curiosa, pois ficou “O Grove” em tempos recentes por deturpaçom do castelão, mais esse “O” nom é nem era artigo. É o caso doutros muitos topónimos que nom fôrom devidamente restaurados pola Lei de Normalizaçom Linguística da Galiza (que si restaurou devidamente a mor parte deles) como “A Golada” por “Agolada”, “Porto do Son” por “Porto Doçom|Dozón”, etc.

  • Confesso a minha ignorância! desconhecia por completo o que são palavras “oxónimas”! Sempre a aprender…obrigado.

  • Perto de onde eu moro, no País Basco, há uma população que se chama Portugalete. Fica no litoral, ao pé da foz do rio Nervión.
    Desconheço a etimologia da palavra mas parece-me que tem muita semelhança com Portus Cale.
    O significado da palavra “Portus” ficou esclarecido de todo. Mas não faço ideia do significado da palavra “Cale”.
    Se tiver tempo e achar de interesse gostaria que nos contasse qualquer coisa acerca do segundo termo.
    Muito obrigado.

  • A origem da palavra Porto, com origem na proto-indo-europeia”pertus”(passagem), fez-me pensar na ponte da Pértega, em Vilarchão, Vieira do Minho, que é uma passagem. Será que Pértega terá origem em pertus?

  • No Brasil, que eu me lembre, tem artigo O Rio de Janeiro e O Recife, este último no falar local. Rio Branco já não tem artigo. Nem Porto Alegre e nem Porto Velho e nem Ponte Nova. Em compensação, falamos Moscou e Pequim, embora muita gente queira mudar para Beijing. Abraços

    • A meu ver, Beijing é a forma usada pelos anglófonos, ao passo que Moscou é a forma usada no Brasil.

  • Não vejo motivo para dizer “a Haia”. Bem sei que em neerlandês é “Den Haag”, ou seja, o artigo definido está lá. Também em francês a cidade portuária do Norte se chama “Le Havre” e nós dizemos “Marselha e Havre são os maires portos franceses”, mas “vou embarcar no Havre”. O artigo definido está lá em francês explicitamente, mas em português só implicitamente, como acontece com o nosso Porto: “Porto e Braga são as duas maiores cidades do Norte de Portugal”, mas “quando vou ao Porto, vou visitar a estação de S. Bento”. Não é o facto de o artigo existir que nos obriga a inclui-lo sempre no nome da cidade, como faziam antigamente os ingleses: “OPorto”. Outro nome geográfico que tem adquirido na comunicação social um artigo definido é “Chipre”. Não entendo por que motivo. Bem sei que o artigo definitivo se deve muitas vezes ao facto de o nome que designa uma cidade ter outro significado mais comum: porto, madeira, açores, guarda, etc. Mas Chipre? Alguém terá confundido com chifre? O único do género que conheço é o Corno de África…

    • Não temos de incluí-lo sempre, mas num grande número de construções é obrigatório, como no exemplo que dá, embora não me fizesse confusão dizer “O Porto e Braga são…”. Já nas cidades que não levam artigo, também podemos usá-lo em construções particulares (“A Lisboa da minha infância.”). Quanto ao nome “Oporto”, é também usado em espanhol, onde é a forma preferida. Já quanto à Haia, encontro o nome com artigo em vários documentos legais, como “Convenção da Haia”, etc. Não há uma regra clara quanto a isto: o uso do artigo nos topónimos é uma característica lexical e não sintáctica. Obrigado pelo comentário!

  • Gostaria que me explicasse, ou me indicasse um livro onde possa perceber
    porquê é que se vêem nas placas das ruas, por exemplo:
    Rua Ferreira Amaral e noutras Rua do
    Padre…, portanto, usam o artigo definido
    invariavelmente?
    Muito obrigado.

  • Primorosa explicação. É curioso e fascinante ver/descobrir/entender como, por exemplo, algumas cidades adoptaram nomes diferentes, em função da língua/cultura dominante em determinada época. É um fenómeno que ocorre e se verifica em todo o mundo.
    Exemplos: La Guardia/A Guarda, Orense/Ourense, Anvers/Antwerpen, Aachen/Aix-la-Chapelle, Bombay/Mumbai, Madras/Chenai, Peking/Beijing, já para não falar de casos de cariz ostensivamente mais ideológico: Lourenço Marques/Maputo, Vila Péry/Chimoio, Nova Lisboa/Huambo…
    Grato pela lição.

  • Porto, cidade que deu nome a Portugal, antigamente Cale, era uma pequena aldeia celta localizada na desembocadura do Douro onde os romanos construíram um porto, chamado “Portus Cale”, origem do topônimo Portugal.

    In tudosobreoporto.com/historia

  • Acredito que no Brasil ( que leva artigo , ao contrário de Portugal) existam duas cidades que levam artigo , dentre centenas e centenas : Rio de Janeiro e Recife . O porquê eu não sei , talvez em futuros artigos também possamos entender porque estas duas cidades especificamente são tratadas com artigos . E o caso curioso fica por conta de Portugal , que se torna um dos poucos países que não vem precedidos de artigo . Alguns outros : Israel , Aruba ( não exatamente um país ), El Salvador ( ou Salvador), Honduras, Andorra, San Marino . São os que consigo citar no momento .

    • E ainda todos os países de língua portuguesa, com excepção do Brasil e Guiné-Bissau: Angola, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor Leste, Moçambique, Portugal…

  • Em inglês quando falamos da cidade, dizemos ‘Oporto’, mais quando falamos dos Dragões sempre dizemos ‘Porto’.

    ‘Port wine’ existe mais é antiquado; hoje me dia o vinho chama-se simplesmente ‘port’.

    ‘Firth’ não é uma palavra inglês, mais escocês.

    • Obrigado! “Firth” é uma palavra escocesa, mas da língua inglesa… 🙂 Apesar de só ser usada na Escócia, não deixa de ser da língua inglesa. Está, aliás, nos dicionários de inglês.

  • Prof. Marco Neves,

    As suas “Crónicas Literárias”, não têm apenas o mérito informativo/cultural; quase sempre nos fazem pensar no que nos tinha passado ao lado e nunca tínhamos reparado.

    A propósito dos artigos antepostos aos nomes de algumas cidades – de que não há regras – talvez se encontre, embora nem sempre, alguma lógica: (o) Porto, para além do nome próprio, é uma estrutura de acolhimento de embarcações; (a) Guarda, também terá um sentido originalmente castrense, (as) ou simplesmente Caldas da Rainha, será um caso oscilante;(o) Seixal, terra de seixos (?) difícil para a agricultura; (o) Fundão, por ser um lugar “fundo” em relação às elevações circundantes, será um topónimo derivado das suas características orográficas. Mas em tudo isto há excepções à excepção; ou, possivelmente, já não conseguimos associar características aos nomes, por serem muito antigos.

    Aproveito a oportunidade da sua palavra “estrambólico”: antigamente os dicionários registavam o vocábulo como alteração popular de “estrambótico”. Hoje, já quase ninguém diz ou escreve estrambótico; até soa mal ! As palavras, muitas das vezes, assemelham-se ao “testemunho” das corridas de estafetas; quando chega à meta, já vai tão suada das mãos dos vários atletas, que mudam de forma; não morrem; transformam-se, como tudo, mesmo tudo, o que existe no Universo.

    Parabéns, professor. Um abraço.

  • Estes “exônimos” (é isto?) são estranhos. Gosto muito de Buenos Aires e jamais a aceitaria se fosse Bons Ares. Já alguns hispânicos se referem a São Paulo como San Pablo, mas a heróica e leal cidade de São Sebastião é Rio de Janeiro no mundo todo. Imaginem se a chamassem de River of January…

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