Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Qual é o problema da palavra «dica»?

beach-84533_640
Uma dica para o Verão…

Há pessoas que odeiam esta ou aquela palavra. Os argumentos são variados: a palavra X é uma moda irritante; ou então tem significados a mais; ou já há outra palavra com o mesmo sentido; ou é demasiado informal; ou tem origem brasileira…

Sim, aceito que cada um tenha as suas irritações. Mas fico sempre surpreendido quando descubro que uma palavra que muitos de nós usamos sem hesitação é considerada por algumas pessoas como imprópria.

Ora, hoje descobri que a palavra «dica», que usei alegremente no artigo anterior (e no título, vejam lá o desplante!), irrita algumas pessoas. Um comentador no blogue informou-me que é «calão brasileiro». Outro, no Facebook, diz-me que é um «neologismo de origem brasileira», como se isso fosse razão suficiente para não usar a palavra.

Quando lhe disse que há outras palavras relativamente recentes que todos usamos, como «pensar» (no sentido que lhe damos hoje) e «normal» (descobri isso há poucos dias no sítio do costume), o comentador respondeu-me isto: «Palavras recentes que vêm do Latim? E apanhar Pokémons?»

Tento interpretar a resposta e chego a esta conclusão: segundo o comentador, é um disparate dizer que «pensar» e «normal» são recentes. Porquê? Porque vêm do latim. (Quanto à obscura referência aos bichos imaginários, imagino que ele me esteja a tentar incluir na metade do mundo que não percebe nada de nada.)

Ora, olhemos para «normal». Talvez tenha origem latina, mas apareceu-nos através do francês e do castelhano. Da mesma forma, «dica» terá surgido da palavra «indicação», que presumo ter os seus próprios pergaminhos latinos.

Tudo palavras de remota origem latina que andaram a passear e nos chegaram vindas doutras paragens. (Ou, no caso de «pensar», mudaram de significado de forma radical.)

Assim, se aceitamos «normal» e «pensar», qual é o problema de «dica»?

Veio do Brasil. E isso é que não pode ser!

Ora, amigos, a sério, querem mesmo andar a limpar a língua e a perguntar às palavras por onde é que passaram? As palavras andam aos saltos pelas línguas. O inglês absorve palavras como uma esponja e faz ele muito bem. O espanhol também. Até o francês! O português tem em si palavras de todos os tipos e origens. Se quiserem uma língua pura, só com palavras que vieram do latim até aos nossos dias sem sair das nossas fronteiras, mais vale calarem-se, porque não vão ter palavras suficientes para viver.

Alguns dirão: ah, mas temos de aceitar qualquer modismo? Claro que não! Mas peço que não me venham mudar à força a língua que aprendi de pais e professores e encontro nos textos que leio… A palavra «dica» faz parte da minha língua, pelo menos da língua que aprendi. Se já foi um modismo, esse tempo passou há muito. Uso «dica» desde que me lembro e, naquele texto, pareceu-me uma palavra clara e directa. Ainda por cima tem a leveza que procurava.

Sim, há outras palavras com significados semelhantes. Mas não podemos ter várias tintas para compor os nossos textos? «Sugestão» tem um significado parecido, mas é um pouco mais formal. «Truque» pareceu-me demasiado forte, porque não estava a falar de técnicas assim tão desconhecidas ou inovadoras… «Dica» era a palavra certa. Outra pessoa teria escrito outro texto, claro. Mas temos de limitar a língua às palavras que cada um de nós usa?

Quem escreve todos os dias precisa de palavras diferentes para compor bons textos: palavras com vários pesos e sonoridades; palavras associadas a registos diferentes; palavras com conotações variadas… É disto que se faz a riqueza da língua. Uma vez mais vemos como o purismo — a ideia de que a língua tem de ser pura, sem palavras estrangeiras nem mudança ao longo do tempo — é um dos inimigos do bom português.

Em vez de matarmos palavras, proponho a seguinte receita para defender o bom português: ler muito, ouvir os outros com atenção e compreender que o bom uso da língua, mais do que na origem das palavras que escolhemos usar, está no estilo do texto, na clareza da exposição e na destreza no uso dos materiais ao nosso dispor. E julgo não me enganar se disser que todos temos muito a melhorar nesses aspectos. Proibir palavras não melhora a língua: é só uma perda de tempo.

O que acham desta dica?

RECEBA OS PRÓXIMOS ARTIGOS
Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

Comentar

14 comentários
  • Acho uma excelente dica, pois claro! Os purismos e as xenofobias linguísticas são espartilhos asfixiantes. Usamos tantas palavras correntes que há 50 anos não existiam… E não era boa ideia voltarmos ao latim!

  • No Brasil há comportamentos semelhantes. Aqui no Nordeste falamos correntemente certas palavras, como arrodear (dentre outras, escolhi essa como exemplo emblemático), que as gramáticas oficiais do português brasileiro classificam como arcaísmo. E ouvimos em outras regiões do país as pessoas reclamarem de usarmos arcaísmos! Para nós nordestinos nunca foi arcaísmo porque nunca deixamos de utilizá-la. Que dificuldade as pessoas tem para lidar com o que é diferente, hein?

  • Ligam tanto à forma que perdem o deleite da comunicação. Eu por mim defendo que a língua, a minha ou outra, é como um organismo vivo: pinta o povo que a usa, define-lhe a cultura. e por agora tem ávonde. (chega, na língua da minha terra).

  • Marco Neves e amigos, esses atritos acontecem principalmente porque amamos nossa Língua Mãe. Aqui no Brasil existe a polêmica acerca do uso dos verbos “por” e “botar”. Uns dizem que “botar” emprega-se quando a galinha “bota” um ovo ou as fruteiras estão “botando” frutos. Outros defendem que a galinha não “bota” mas “põe” o ovo e praticamente só existe para esse fim e nas demais situações usa-se o verbo “botar”. Hoje, as pessoas brincam umas com as outras, quando se deparam com esta situação, se forem de regiões e usos diferentes desses verbos. A este propósito, verifico que em Portugal não se usa o verbo “botar” ou estou enganado? O amigo Marco Neves bem que podia me socorrer, não é? Abraços

      • No norte de Portugal é muito habitual ouvir “bora aí”.
        Aliás, eu vivo e trabalho no sul e tenho colegas do norte que, volta e meia, lá lhes ‘escapa’ “onde botastes a caneta”?
        (mais habitual em pessoas com mais de 50 anos e um grau de escolaridade menos elevado.)

        E, tal como o Marco, acho ‘delicioso’.

      • Peço desculpa, pois estou a escrever num telemóvel e, por falha de digitação, saiu-me “bora” quando na verdade queria ter escrito “bota”. 😉

  • Oi Valentim, obrigado pela “dica”. Pois é, parece que a contribuição galega para o povoamento destas partes do Brasil (Nordeste) foi intensa já que, juntando-se a esta “cultura” do uso sistemático do “botar” que aqui também é usado para tudo, exceto quando a galinha “põe” o ovo, usamos muitas palavras tipicamente galegas como: Vixi ou Vixi Maria (Virgem Maria), Oxente (Ó gente) e outras, e também há o costume de apelidar as pessoas loiras e de olhos coloridos por “galegos”, e por aí vai…
    O encontro da “luso-galaico-fonia” através deste sítio do amigo Marco Neves é uma festa saudável aos nossos genes comuns, não é?
    Grande abraço

  • Boa tarde.

    Um comentário com mais de 1 ano de atraso, mas só hoje, felizmente, descobri por acaso o seu blogue que acho interessantíssimo porque trata de uma matéria de que muito gosto e aprecio. Até vou procurar onde me inscrever, o que já descobri algures.
    Tenho o Windows 10 que na respectiva Loja me permitiu descarregar o Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora.
    Consultei a palavra DICA e claramente não há problema algum em a usar, pois obtive a respectiva “definição”, “exemplo de” a mesma e na “forma de” ficamos a saber que é a 3ª pessoa do singular do presente do indicativo de dica e a 2ª pessoa do singular do imperativo de dica.
    Com os meus cumprimentos.

    • Os comentários nunca vêm atrasados, são sempre bem-vindos. Seja também bem-vindo a este blogue. Obrigado!

      • não compreendo nem sei como interpretar ou usar essa palavra.
        Acho mal buscar palavras que mais parecem desnessecáriamente embaralhar em vez de ajudar a comunicar.
        Desculpem possiveis erros da minha escrita..

  • Em resposta à sua pergunta, respondo, tal como o fez um dia, a propósito de uma visita, o Alm. Américo D. R. Tomás, (P.R.): “só tenho um adjectivo: gostei “.
    Sim, no mar enjoava; mas na Gramática era Mestre!

Certas Palavras

Arquivo

Blogs do Ano - Nomeado Política, Educação e Economia