Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Que animais se escondem na língua portuguesa?

Uma vez por outra, gosto de olhar com atenção para as palavras que, todos os dias, nos saem da boca. Pois, hoje, pensei nos animais que temos debaixo da língua e fiquei com a pulga atrás da orelha… Aqui ficam vinte animais do português.

1. Pulga atrás da orelha

Foi esta a expressão que me deixou curioso: a língua tem muitos animais, não tem?

2. Em boca fechada não entra mosca

Uma expressão bem verdadeira — mas se não entra mosca, também não sai nada de interessante. Às vezes, mais vale perder o medo e falar — mesmo se às vezes dissermos disparates ou cairmos na tentação de dizer cobras e lagartos.

3. Cobras e lagartos

Coitados destes bichos — ninguém gosta deles e são metáfora para as crueldades que lançamos da boca para fora. Sempre fomos um pouco injustos para com os animais — que culpa têm as cobras e os lagartos das nossas maldades?

4. Lágrimas de crocodilo

Sabe-se lá donde vem esta estranha fama: alguém já viu um crocodilo a chorar? Eu não — mas já vi muita gente com lágrimas de crocodilo, é bem verdade.

5. Engolir sapos

Pois, se as cobras, os lagartos e os crocodilos metem um certo medo, o que dizer dos sapos? Algum nojo, é o que metem — principalmente se os tivermos de engolir. E, no entanto, para lá do nojo, o famoso animal é metaforicamente engolido tantas e tantas vezes, principalmente em eleições (dizem).

6. Dinossauros

Não saímos da política: os velhos dinossauros, animais possantes e bem extintos há milhões de anos, conservam-se ainda em muitas câmaras municipais por esse país fora, embora agora com mais dificuldade.

7. O primeiro milho é para os pardais

Os velhíssimos dinossauros extinguiram-se, mas não morreram todos — alguns acabaram por dar origem às aves, que agora andam a esvoaçar pela nossa língua. Para começar, temos os pardais, que têm sempre direito ao primeiro milho.

8. Água no bico

Sim: a velha galinha é um dinossauro depois de uns milhões de anos de clara decadência. Decadência? Sim: não me parece que haja por aí algum Spielberg pronto a filmar uma história sobre um parque cheio de galinhas… E, no entanto, são um animal como os outros! Embora, às vezes, tragam água no bico…

9. Memória de elefante

Sem dinossauros, temos outros grandes animais, a começar pelos simpáticos elefantes. Serão assim tão bons a recordar? Provavelmente, não — tal como os peixinhos de aquário também não são assim tão maus no que toca à memória. Dizem que, afinal, uma recordação de aquário ainda dura uns meses…

10. Vai pentear macacos!

Uma ocupação curiosa: pentear macacos… Será que algum deles deixaria um pente chegar-lhe à trunfa? Não me parece — mas mesmo assim lá mandamos quem nos chateia ir pentear os ditos símios.

11. Tirar macacos do nariz

Símios esses que também aparecem dentro dos nossos narizes, para gáudio das crianças, sempre prontas a tirá-los de lá!

12. Macaquinhos no sótão

Já os adultos, se não assumem tão facilmente os macacos que têm no nariz, talvez seja por terem muitos macaquinhos no sótão…

13. A cavalo dado não se olha o dente

Pois, temos de ser exigentes, claro está — com os cavalos e não só. Mas se alguém nos oferece um cavalo, para quê reclamar? O mesmo se aplica se alguém nos oferecer um gato caçador…

14. Quem não tem cão caça com gato

Os gatos, coitados, até são bons caçadores. Por mim, não me importaria de caçar com um gato — mas admito que seja mais fácil pedir ajuda aos cães, treinados por séculos e séculos para nos ajudar nisto (e noutras coisas). Seja como for, nesta curiosa expressão da nossa língua, o que temos é mais uma manifestação do famoso desenrascanço.

15. Cão que ladra não morde

Se dizem que o tal desenrascanço é muito português, também o será (dizem as más línguas) andar aos gritos sem fazer grande coisa para resolver o que quer que seja. Quem ladra não morde! E quando não ladra? É então que a porca…

16. Agora é que a porca torce o rabo

Uma das mais estranhas expressões do português: o que acontece a uma porca com o rabo torcido? Não sei: mas sei que é nesses momentos em que a porca torce a cauda que a coisa começa a ficar interessante! E é nestas expressões sem lógica que o português se revela uma língua bem malandra…

17. Vozes de burro não chegam ao céu

Se, enfim, alguém se põe a chatear e não podemos mandá-lo pentear macacos, temos de morder o lábio e imaginar que há vozes que se mantêm rasteiras, sem subir às nuvens.

18. Nem que a vaca tussa

E reclamem o que quiserem, mas há coisas que não fazemos — nem que a vaca tenha um ataque da dita tosse.

19. Outra vaca no milho

E, por fim, porque a língua também se faz daquilo que não conhecemos, deixo aqui uma expressão galega, mas de sabor tão nosso. Quando alguém cai no mesmo erro que tantos e tantos outros, dizem os galegos que é «outra vaca no milho». Se não servir para mais nada, que esta crónica sirva para espalhar essa bela expressão por terras a sul do Minho.

20. Burro velho não aprende línguas

Sim, a partir da adolescência é mais difícil aprender línguas (somos todos burros velhos muito cedo). No entanto, continuamos a aprender a nossa língua — e, no fundo, a recriá-la — até ao nosso último dia. Não há dia em que não aprendamos alguma coisa nova, mesmo sem notar.


Há tantas, tantas outras expressões com animais. São apenas um dos muitos recantos da nossa língua, que é um armazém de metáforas antigas, imagens muito nossas, pequenos alfinetes que nos picam a imaginação…

Este texto, publicado no Sapo 24, foi incluído no livro Almanaque da Língua Portuguesa. Se quiser receber o livro em casa, basta encomendá-lo no formulário abaixo.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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14 comentários
  • O crocodilo, ao comer sua presa, por conta da anatomia de sua cabeça, pressiona glândulas lacrimais que faz os olhos verterem lágrimas. “Chora” enquanto come sua presa.

  • Algumas destas expressões existem também em holandês em palavras idênticas. Por exemplo:
    Lágrimas de crocodilo – krokodillentranen
    Cão que ladra não morde – blaffende honden bijten niet
    A cavalo dado não se olha o dente – een gegeven paard niet in de bek kijken
    Memória de elefante – het geheugen van een olifant

    O ‘culpado’ desta coisa podia ser Desiderius Erasmus. Ele publicou no ano1500 milhares de expressões gregas e latinas no seu livro ‘Adagia’. Este livro foi usado em toda a Europa nas escolas e na literatura. Por isso muitas expressões foram adoptados nas línguas europeas.

    Gosto muito les os seus artigos. Cumprimentos, Maja

  • Com vinagre não se apanham moscas

    Só mais uma para acrescentar a uma lista tão rica com expressões contendo animais.

  • As expressões 7, 8, 11, 12, 17, 19 e 20 não se ouvem aqui no Brasil.

    Aqui vão outras:

    Cão que ladra não morde
    Briga de cachorro grande
    À noite todos os gatos são pardos
    Amigo da onça

    • Concordo com a sua opinião. Estas expressões nos são desconhecidas. Eu me lembro de outras: chutar cachorro morto, não aguenta segurar uma gata pelo rabo, a vaca foi “pro” brejo, criar um burro a pão de ló, confusão tipo barata-voa, uma andorinha não faz verão, neste mato tem cutia, elefante em loja de cristal, a noite todos os gatos são pardos. Quanto ao Amigo da Onça, eu sugiro ao Marco escrever um artigo. É mais do que uma expressão. É um personagem clássico do humor brasileiro e que se eternizou no nosso falar,

  • “Quem não tem cão caça como o gato” – este é que é o provérbio correcto. E quem caça como o gato… desenrasca-se, efectivamente!

  • Volto à liça agradecido pela informação e quanto à indicação do artigo onde refere vários mitos da língua portuguesa e que foi lido com muita atenção. Porém, continuo a discordar da sua opinião. A lógica preside naturalmente ao surgimento de provérbios – uma síntese de um pensamento fruto da ancestral sabedoria popular, digo eu; quando o Homem caça socorre-se de animais, amestrados, que o ajudam naquela actividade : o furão, a águia, o cão, etc. Mas, meu Caro Senhor, já lhe constou que alguma vez o gato seja útil naquela tarefa? Não será um absurdo interpretar o provérbio como refere? Porém, o gato, como ser independente que é e que não caça em matilha, desenrasca-se … sozinho! Tal como o Homem terá que fazer – à falta de um cão.

    • Como poderá verificar num dicionário de provérbios, o habitual é “com gato”. A lógica — que, aliás, não é um critério absoluto no campo das expressões idiomáticas — será esta: quando não temos a ferramenta mais habitual (o cão), caçamos com aquilo que temos à mão, mesmo que não seja o mais adequado (o gato). Ou seja: usamos o que temos, tentando resolver o problema. É neste sentido que o provérbio é habitualmente usado. Se procurar, verá que a versão “como gato” é uma invenção recente. Cumprimentos sinceros!

  • Temos ainda no Brasil a expressão chula “afogar o ganso”, significando ter relações sexuais.

Certas Palavras

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Marco Neves

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