Tinha uns 12 anos quando as fronteiras acabaram na Europa. Não sendo minimamente nostálgico de um tempo em que era preciso passaporte para ir a Badajoz, não deixo de sentir um certo sabor a aventura ao aproximar-me daquelas fronteiras a sério, em que é preciso parar e passar por guardas que nos olham desconfiados.
Ora, a fronteira a sério mais próxima de Portugal é também a fronteira mais pequena do mundo: aquela linha bem marcada entre Gibraltar e Espanha.
Gibraltar sempre me fascinou. Aliás, os países minúsculos são para mim fonte de particular encanto, que agora não consigo explicar sem me alongar demasiado. Não sendo propriamente um país, aquele pedaço de Império Britânico ali ao sol do Mediterrâneo parece uma Inglaterra dos Pequenitos, com África ao fundo.
Pois bem, houve um Verão da minha adolescência em que os meus pais me levaram a mim e aos meus irmãos a passear de carro pelo Sul de Espanha.
Lá fomos visitar essa Inglaterra-ao-Sul, onde entrámos e ficámos parados no semáforo à espera que um avião aterrasse. Ao fundo, o Rochedo, onde se esconde a única espécie de símios da Europa (se exceptuarmos a nossa própria espécie, claro está).
Fiquei desiludido por perceber que os gibratinos conduzem do lado «certo» da estrada. Fiquei, no entanto, maravilhado por estar num território onde se falava inglês, a língua que tinha começado a aprender há pouco tempo.
Fomos comer qualquer coisa e acabámos no McDonald’s, porque turista que é turista não faz ideia onde se come bem em terra estrangeira.
Pus-me na fila para demonstrar ao meu pai que sabia pedir comida em inglês. Ele lá me acompanhou, para ver o que dali saía.
Peço o menu (não me lembro qual) e qual não é o meu espanto quando a senhora me pergunta qualquer coisa numa língua que parecia tudo menos inglês. Perguntou-me: «efodrin?»
Olhei, pasmado. Ela esperava a resposta, impaciente. O meu pai, mais prático e habituado a inglês de rua e menos a inglês da escola, lá me disse: «a senhora está a perguntar o que queres beber».
Exacto. Ela tinha dito «And for drink?», mas com sotaque espanhol carregado.
Fiquei a perceber que as línguas de Gibraltar são um pouco mais complicadas e misturadas do que presumia. Fala-se, oficialmente, inglês, quase todos falam também espanhol e têm ainda aquilo que se pode chamar de língua própria, o llanito.
O llanito é uma forma de falar que não é oficial e consiste, pelo menos à primeira vista, num espanhol com muitas palavras e expressões inglesas à mistura. Certamente terá as suas próprias regras — e há quem defenda a criação duma ortografia oficial. Um exemplo dum texto nessa ortografia proposta:
Soi un fem biliva de ke tolô làngwijez son ìkwol vàlid fomz de komiunikeixon rigadles de kwàntô spìkaz tengan. Er Llanito ê un làngwij avlàu por apròksimetli 20,000 – 30,000 personâ. Er kontènpori Llanito s’iso divèloping durante’r 20f sènchuri n’Hivertà kwando’r lòukol varàieti del’Andalûh (ke lla ‘vìa sìo ìnfluentsd por er Henovêh, la Haketìa etc) se vio stròngli ìnfluentsd pol’Inglêh Vritàniko.
Se usarmos ortografias mais habituais, temos algo como: «Soy un firm believer de que todos los languages…»
(Podem encontrar o original llanito e as traduções em espanhol e inglês neste site.)
Parece uma grande misturada? Não será mais do que o próprio inglês, que no fundo é anglo-saxão misturado com francês normando.
Por outro lado, esta tentativa de dar forma escrita ao llanito não será uma maneira de criar uma língua à força? Talvez. Mas não seria a primeira nem a última vez.
Bem, o certo é que acabei por pedir «water» e a senhora percebeu. E deu-me o troco em libras, o que me deixou maravilhado.
E o enlace que deche?
Caro Marcos, boa noite. Sou brasileiro, de São Paulo e hoje tive o prazer de ler artigo seu pela primeira vez. Aliás, dois artigos: um sobre Gibraltar e outro sobre o Couto Misto. Estudei Linguística na Universidade de São Paulo e tenho a mesma verve por línguas. Sou professor de Inglês e tradutor. Parabéns pelo seu trabalho.