Às vezes, alguma pessoa mais dada a procurar desculpas para não gostar deste ou daquele autor diz que não lê Saramago “porque ele não sabia escrever português”.
Esta ideia desenvolve-se num discurso que inclui afirmações do género: ele não usava vírgulas (se há escritor que gostava de vírgulas, era Saramago); não usava pontuação (a sério?); não seguia as regras do português…
Ora, o que acontece é isto: Saramago tinha uma forma própria de assinalar o diálogo. Em vez do travessão e parágrafo, usava a vírgula e a letra maiúscula.
É só isto! Uma pequena modificação das convenções ortográficas relativas ao diálogo das personagens. Porquê? Porque sim. Porque dava à sua escrita um sabor mais oral, porque lhe apetecia, porque ficava melhor. Não interessa: não foi o primeiro escritor (e muito menos será o último) a torcer as convenções para conseguir uma voz própria. Alguns vão muito mais longe.
Por exemplo, António Lobo Antunes desmancha de forma mais radical as convenções ortográficas do português e poucos reclamam (talvez porque nunca tenha aberto um livro deste autor?).
Há outros escritores portugueses que preferem as aspas (ah, malandros!).
Há até escritores de língua inglesa que seguem as nossas convenções (ou melhor, as convenções francesas, onde, muito provavelmente, fomos buscar as nossas). Exemplo? James Joyce.
Para lá das convenções ortográficas, não cabe neste artigo falar do que é a literatura e da forma como os escritores não têm de seguir as apertadas regras do registo formal da sua língua.
A literatura faz-se com as regras e convenções, mas às vezes abusando dessas mesmas regras e convenções para conseguir algum tipo de efeito sobre o leitor.
Quando olhamos para Saramago, estamos muito longe de estar perante um escritor que não sabe as convenções e as regras do português. Um bom escritor usa a língua com todas as suas gradações: a norma, os desvios, os regionalismos, a ortografia e os erros de ortografia — tudo o que for preciso. Tudo é material ao seu dispor.
Em conclusão: dizer que Saramago não sabe escrever porque não segue determinadas convenções equivale a dizer que um pintor famoso não sabe pintar porque não usa apenas as cores definidas no Plano Director Municipal para as fachadas dos prédios do seu município.
Ser escritor é uma atividade criativa e essa criatividade também pode passar por ter uma maneira propria de pontuar o discurso.As pessoas não percebem…
Eu sei que a colocação de vírgulas, por exemplo, tem regras. Mas como pessoa que sou, não sabia, talvez por não ter percebido, que afinal havia pessoas que as consideravam facultativas. É minha opinião que não pode ser tudo “à vontade do freguês”.
E não é à vontade do freguês. O Saramago sabia bem usá-las, como perceberá se o ler com atenção. O que é facultativo é o estilo de indicação do diálogo no caso muito específico da literatura.
“Por exemplo, António Lobo Antunes desmancha de forma mais radical as convenções ortográficas do português e poucos reclamam (talvez porque nunca tenha aberto um livro deste autor?).”
Eis a grande verdade.
Não faz mal, Eça de Queiroz também foi acusado no seu tempo de escrever português mal; hoje em dia é usado, pelos críticos de Saramago, como um exemplo a seguir.
Dizia alguém (já não me lembro quem) que o Eça escrevia em português traduzido do francês. Enfim, cada tempo tem as suas tricas.
A Minha Técnica Narrativa
Todas as características da minha técnica narrativa actual (eu preferiria dizer: do meu estilo) provêm de um princípio básico segundo o qual todo o «dito» se destina a ser «ouvido». Quero com isto significar que é como narrador oral que me vejo q
Quando escrevo e que as palavras são por mim escritas tanto para serem lidas como para serem ouvidas. Ora, o narrador oral não usa pontuação, fala como se estivesse a compor música e usa os mesmos elementos que o músico: sons e pausas, altos e baixos, uns, breves ou longas, outras. Certas tendências, que reconheço e confirmo (estruturas barrocas, oratória circular, simetria de elementos), suponho que me vêm de uma certa ideia de um discurso oral tomado como música. A oralidade, pede pausas como ele bem o reconhece e as pausa tomam as formas de pontos, vírgulas e pontos e vírgulas. Se há forma de expressão que mais pede pontuação, é a musical, algo que ninguém, creio, negará, ou como ler uma frase musical sem que a dita tenha pausas escritas? Ele é sincero em dizer que não usa a técnica convencional para se exprimir. Não é verdade que não usasse vírgulas, mas eram escassas, nuns livros mais que noutros.
Espero que esse “Porquê?” seja para dar à sua escrita um sabor mais oral, para lhe apetecer e para deixá-lo melhor.
Não percebi o comentário, confesso? Qual é o problema do «Porquê?»
Já agora, sobre o uso do «porquê», aqui ficam algumas indicações úteis: https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/porque-por-que-e-porque/243
“Não entres tão depress nessa noite escura” parece uma adaptação (quase plágio) do poema de Dylan Thomas “Do not go gentle into that good night”
É bem provável que o título de Lobo Antunes seja uma evocação desse verso, sim.
Estava no colégio, e a professora deu-nos uma poesia, acho que de Carlos Drummond, para fazer uma análise profunda do seu significado. Após a análise, mandou-nos fazer um texto diferente, mas baseado naquele texto drummondiano. O poeta usava um neologismo no texto. Se bem me lembro era algo como : os lençóis bandeira-nacionalizavam ao vento. Ou seja ele tinha inventado o verbo “bandeira-nacionalizar”. Ao fazer o meu texto, achei que devia inventar um verbo novo. Inventei-o e perdi dois pontos no teste. Ao reclamar, a professora foi clara, o Drummond pode inventar o que ele quiser, você não. Por isto evitaria em uma prova ou em um concurso dizer algo sobre uma “frauta rude” ou uma trombeta sonerosa. É sempre possível que ouça: o Camões pode, você não.
Dentro desta linha, eu não gosto de textos que inventam na pontuação, evitam. Aiusculas, etc. Acho que isto é mais lusitano do que brasileiro. Li só dois Saramagos, o Evangelho de JC e Caim. Gostei muito, mas tive dificuldades com algumas palavras (como vou saber que o alvanil é o cara que constrói alvenarias, ou seja, o nosso pedreiro) e achei muito interessante que a estrutura do texto estava mais próxima do castelhano do que o português brasileiro, visto que nós quase que abolimos os pronomes oblíquos ou os deixamos ocultos. Dentro desta linha, livros e peças de teatro que representam a linguagem falada têm que trazer as cores da rua. Vejam as nossas telenovelas e como erramos no uso dos pronomes e nas concordâncias verbais, principalmente o tu é o você. Se corrigissem, ficaria artificial. É suficiente para isto ler os diálogos de Jorge Amado. Gabriela seduziu metade de Ilhéus, com seu cheiro de cravo e cor de canela, cometendo estes erros de português. E viva o nosso rude e doloroso idioma.
Continua sendo errado. Não é só porque é escritor famoso que você tem que passar pano. Fala é com travessão e pronto, não tem essa de “reinventar a escrita”. Quando um aluno erra ou escreve uma palavra que não existe ele é repreendido, mas ai quando um escritor famosinho escreve uma palavra que não existe, por pura ignorância, todo mundo aplaude e chama de “neologismo”… hipocrisia pura.
Não, não é assim tão simples. As convenções do diálogo variam no tempo e há muitos escritores que não usam o travessão (que, aliás, nem sempre foi usado para o diálogo em português). Por fim, está muito longe de ser ignorância: este escritor em particular usava o travessão nas suas primeiras obras. Sabia usá-lo. O uso da vírgula foi uma opção literária. (Nem “neologismo” nem “hipocrisia” são palavras com alguma relação com o caso.)