Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Sete dicas para rever as nossas próprias traduções

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Antes de mais, um conselho. Ou melhor, um pedido muito insistente. É o que lhe quiserem chamar: importante mesmo é ler as nossas traduções no fim.

Ora, não é fácil. No fim da tradução, estamos cansados. Provavelmente, o prazo está a chegar ao fim. Estamos enjoados do texto. Já não conseguimos ver aquilo à frente. Ainda vamos ter de ler tudo outra vez?

Parece que sim.

Mas as más notícias não acabam: não só é difícil aceitar esta tarefa final, como ainda por cima é muito provável que deixemos escapar muitos erros, porque — lá está — estamos cansados, enjoados e já não conseguimos ver aquilo à frente.

Pois, aqui ficam sete dicas para nos ajudar a todos nesta fase importantíssima de qualquer projecto de tradução.

Não digo que as apliquemos todas. Não digo também que sejam as dicas de revisão mais importantes. São apenas algumas ideias, que podem, de vez em quando, ajudar alguém que está a terminar uma tradução e quer fazer um trabalho como deve ser.

(Estas ideias vão surgindo ao longo dos anos de tradução que vou deixando para trás. Umas serão óbvias para todos. Outras foram-me ditas por colegas e alunos. Porque não inventei nada, convém dizer um obrigado a todos eles.)

Aqui estão, então, as sete dicas:

1. Deixar passar algum tempo.

Esta é a dica mais conhecida e também a mais vilipendiada. Pois não é óbvio que os tradutores não podem deixar passar algum tempo? Os prazos são o que são e tempo é coisa que não nos assiste. Desta forma, nem vale a pena pensar muito nesta dica, certo?

Errado. Vale sempre a pena.

Imaginem um texto de 100 palavras com um prazo de 24 horas. Podemos traduzi-lo de manhã e relê-lo à noite. Ainda por cima é um texto pequeno, nem sequer enjoa…

2. Tirar o texto do programa de tradução.

Esta dica é válida para todos os que usam Trados, memoQ e outros que tais. Estamos a traduzir com o texto partido em pedaços (também conhecidos por «segmentos»). Será muito bom, para garantir a qualidade final do texto, que o possamos ler em Word, seguidinho, para afinarmos as ligações entre as frases, a coerência de todo o conjunto e o português em geral.

Será também útil fazermos a correcção ortográfica no Word: sempre conseguimos detectar umas quantas gralhas que, dentro do programa de tradução, passariam despercebidas (basta pensar no corrector gramatical que, imperfeito como é, lá vai ajudando a evitar umas falhas de concordância verbal aqui e ali).

Aviso: convém inserir as alterações também no programa de tradução, para que as memórias fiquem limpas de erros e imperfeições (dentro do possível, porque — já sabemos — perfeição é coisa que não existe).

3. Ler em voz alta.

Esta, confesso já, é dica que não sigo. Não dá para estar a ler em voz alta textos de largos milhares de palavras, ainda por cima num escritório com colegas ao lado que não estão muito virados para ouvir descrever, alto e bom som, como funciona o último modelo da máquina de produzir parafusos que acabei de traduzir.

Mas, enfim, o que vale para a escrita de textos originais também valerá para as traduções que se querem bem escritas: ler os nossos textos em voz alta ajuda a garantir que não temos frases atrapalhadas e a detectar erros com mais facilidade.

(Há quem diga até que pôr o Windows a ler com voz de robot os nossos textos nos ajuda a ver onde estão as gralhas ou as faltas de acentos, porque não há mente mais impiedosa — e quadrada — do que a de um computador: se tivermos escrito “publico” em vez de “público”, o computador lerá o verbo e não o substantivo, estando a lixar-se para o contexto. E ainda bem, porque os nossos ouvidos são mais atentos que os nossos pobres olhos de tradutor.)

4. Mudar o tipo de letra.

Nunca se sabe. Às vezes, mudar temporariamente o tipo de letra pode ajudar a descansar os olhos ou até a sublinhar as letras em falta ou os acentos de que nos esquecemos. Mas convém deixar tudo como estava no fim. Não vá o cliente receber um documento em Comic quando nos enviou o original no sisudo Times New Roman. Com estas coisas não se brinca!

5. Imprimir a nossa tradução.

Eu sei, eu sei… Não devia estar a incentivar ao abate de árvores. Mas lá haverá um ou outro documento em que a leitura em papel pode ser necessária para não deixarmos passar erros. Quem já passou pela experiência, sabe que não há nada como ler um texto nosso em papel para encontrarmos todo um mundo de erros que não víamos no computador. É um mistério ao nível do desaparecimento das meias nas máquinas de lavar roupa.

6. Criar um PDF.

Para quem não quiser cair na tentação de seguir a dica anterior, esta será outra solução. Parece estranho, mas o PDF dá ao texto outro contexto, ajuda-nos a olhar para aquilo com olhos de ver, porque já não estamos em fase de rascunho e o documento já tem ares de terminado. No fundo, o PDF é uma imitação barata do papel…

Enfim: não sei que mecanismo cerebral será este, mas a verdade é que encontro mais erros nos textos em PDF do que nos textos em Word ou dentro dos programas de tradução.

(Ainda uma outra dica: ler no telemóvel; ou no tablet. Sempre se poupam umas preciosas árvores.)

7. Não olhar para o texto de partida.

Sim, devemos olhar para o texto de partida para conseguirmos perceber se nos enganámos na interpretação do texto e se não deixámos escapar uma qualquer expressão. Mas também há vantagens em esquecê-lo. Uma leitura final da nossa tradução como se fosse um texto original ajuda-nos a encontrar frases estranhas, encadeamentos que não fazem sentido (e são, provavelmente, erros de tradução) e ainda a melhorar todo o texto.

Digamos que esta será a última demão da nossa pintura: depois da tradução em si, limpamos o texto final para que apareça aos olhos dos leitores sem a poeira que fica depois de todas as obras.

Haja tempo para isto, não é?

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Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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