Ui, que coisa tão antiga, não é? Uma lista de virtudes assim a dar para o medieval…
E, no entanto, todos reconhecemos que há exageros no que dizemos, erros nos nossos argumentos e pecados na forma como usamos a nossa língua.
Não será difícil, assim, aceitar umas quantas virtudes da língua portuguesa como meta mais ou menos distante.
Não se atrevam a pensar que vos estou a enumerar aquelas que julgo serem as minhas virtudes. Antes pelo contrário: em tudo isto falho — e, atrevo-me a dizer — falhamos todos.
Uma utopia, se quiserem, uma utopia muito pessoal — sim, porque esta não deve ser uma lista para atirar aos outros («vês como não fazes isto?»), mas antes para uso próprio.
Sopremos o pó às antigas Sete Virtudes e imaginemo-las aplicadas à nossa língua:
1. Caridade
Ouvir os outros de forma aberta e, em caso de dúvida, oferecer a caridade de interpretar da melhor maneira possível o que nos dizem.
Tentar encontrar pontos de encontro — ou, pelo menos, fazer o esforço de ler até ao fim, de não cair logo na pior leitura possível.
Não atirar pedras desnecessárias e ser primeiro exigente connosco próprios e, depois, com delicadeza e proporção, com os outros.
2. Temperança
É difícil, não é?
Muitas vezes, a tentação é forte de mais: caímos no insulto fácil porque apetece.
Caímos também em pecados mais subtis, como a demonstração gratuita de virtuosismo perante quem não sabe expressar bem o que pensa.
Ou então murmuramos desprezo sibilino por aquele que não é exactamente como nós, não pensa como nós ou ainda não chegou às certíssimas conclusões de que somos donos — ou se atreve a não conhecer de cor todas as intrincadas voltas que a língua dá na nossa rua.
Quanta falta faz a temperança no Facebook, não acham?
3. Diligência
Não dizer por dizer. Pensar um pouco antes de escrever. Não que tenhamos de acertar sempre — até podemos errar muitas vezes. Mas hesitar um instantinho e alimentar, um pouco que seja, a sabedoria da dúvida também é uma virtude — ou não será?
Depois: aprender a escrever o melhor possível. Ler muito. Escrever de novo. Não desistir. Não ficar convencido que já está, que já chega, que já aprendemos tudo.
Há também aspectos mais práticos: rever o que escrevemos, reescrever e tentar de novo depois de falhar (e ainda mostrar a outros, se houver tempo e necessidade). Em suma: tentar escrever melhor.
4. Paciência
Sim, num mundo complexo, com tantas pessoas diferentes, convém ter alguma paciência com aquilo que os outros dizem e com a forma como falam e escrevem.
Não convém começar aos gritos por dá cá aquela palha, não ficar exasperado porque nem todos sabem escrever como queríamos que soubessem.
As virtudes são difíceis. E a paciência é, talvez, a mais difícil de todas.
5. Bondade
Escrever de boa-fé e dar a quem nos lê aqui que sabemos sem manipulações ou sombras desnecessárias.
Fazer o esforço de ser claro — ou pelo menos tentar.
Escrever como quem conversa e conversar de forma generosa — não apenas para impressionar.
Mostrar, de forma simples, o mundo como o vemos.
Ter o prazer de ensinar e aprender através da língua, de ultrapassar a falta de paciência e a falta de tempo — e escrever e ler o mais possível.
6. Humildade
Ora, nisto da língua, onde entra a humildade?
Não é difícil: quem acha que tudo sabe, não aprende nada, não é assim?
E quem julga que nunca erra — na língua e no resto — vai errar mais facilmente.
Enfim, errar é humano — e há que ter a humildade de o reconhecer.
Seis virtudes? Então e a outra? Pois: deixo a castidade no pó dos manuscritos medievais e vou buscar um pecado mais apetitoso para a substituir nesta lista de sete virtudes…
7. Luxúria
Ora, pois, esta é uma virtude disfarçada de pecado.
Daquele pecado que apetece.
A luxúria de ler bons livros, de sentir as frases a rebolarem-nos nos lábios — e também escrever e conversar e ouvir e rir em conjunto, com uma ou outra piada mais ou menos maldosa — e, claro, o prazer das palavras secretas ditas a dois.
O prazer ainda de experimentar e olhar para as fronteiras da língua portuguesa, de saltar para o outro lado e falar outras línguas, de ler de tudo e mais alguma coisa, de viajar pelo mundo a ouvir e a aprender — e muito, muito mais.
De tudo isto se faz esse prazer da língua — que será a última das virtudes que devemos perder.