Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Somos todos descendentes de Jesus (ou se calhar não é ninguém)

LIVROS NA BAGAGEM. CAPÍTULO 3.

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Dois descendentes de Jesus a aprender matemática.

Ora, no último capítulo da minha viagem com livros na bagagem, disse-vos que iria falar da voz que diz os nomes das estações do metro de Londres. Mas as viagens são assim: há estações secretas e acabei por pensar noutra coisa.

Hoje, enquanto andava pela rua, para ir ter com um amigo dum amigo duma amiga para entregar uns livros que comprei em Inglaterra (já vos falei deste tráfico no primeiro capítulo), lembrei-me (já não sei porquê) dum livrinho muito apetitoso que li há uns bons anos. O livro é português, foi escrito por um matemático, mas antes de vos dizer qual é, deixem-me falar-vos doutro livro, este escrito por um norte-americano e bem ficcional (apesar de o autor jurar no início que é tudo verdade).

O livro é o famoso The Da Vinci Code. Vou fazer algumas revelações sobre o enredo dessa obra. Se alguém quiser ler o livro ou ver o filme, pare agora (mas não aconselho; gostava mesmo muito que lessem este capítulo até ao fim).

Bem, o livro revela um suposto escândalo: existe, hoje em dia, um descendente de Jesus! Ah, malandros! Segundo o autor, Jesus foi casado com Maria Madalena e mais não sei o quê — e a prova está bem viva na carne da descendente actual do casal divino.

Sei isto porque vi o filme; o livro não será, talvez, tão mau como o pintam, mas não o li. Tentei, mas fiquei-me pelo parágrafo em que o autor diz que a Torre Eiffel é o símbolo do machismo francês.

Ora, o meu problema com o enredo é menos religioso do que matemático.

Explico-me.

A ideia do livro é que haveria uma descendente de Jesus Cristo, que seria a última duma longa linha de descendentes, que teriam passado pelos Merovíngios, linhagem essa que teria sido protegida ao longo dos séculos por uma espécie de Ordem de Cavalaria, coisa que agora não vem ao caso.

Paremos uns segundos para pensar no caso.

Se virmos bem, na verdade, só há duas hipóteses: ou Jesus não teve filhos (como diz a Igreja Católica) ou, se os teve, não existe um descendente de Jesus. Existem milhares de milhões de descendentes de Jesus!

Reparem: no caso hipotético de Jesus ter tido descendentes, será extraordinariamente difícil imaginar que todos os descendentes, ao longo das muitas gerações, tenham tido apenas um e só um filho. Se assim fosse, então sim poderíamos imaginar que hoje haveria um e um só descendente de Jesus.

Ora, como o número médio de filhos sempre foi bem superior a um por mulher (hoje em dia está a diminuir nos países mais ricos, mas esta situação é uma excepção na História dos últimos milénios), podemos concluir que, de Jesus até hoje, os seus descendentes terão tido bem mais do que um descendente cada.

Para sermos muito cautelosos, imaginemos que, em média, os descendentes de Jesus tiveram dois filhos. É uma média razoável. Vários terão tido seis ou sete, outros não terão tido nenhum.

De Jesus até hoje passaram uns 20 séculos. Imaginando quatro gerações por século (talvez até sejam mais), temos 80 gerações. Oitenta gerações em que cada descendente tem, em média, dois filhos cada um.

Ora, reparem: Jesus terá tido, então, hipoteticamente, dois filhos. Os seus dois filhos terão tido dois filhos cada um (estamos a simplificar, usando a média acima). Estes quatro netos de Jesus terão tido dois filhos cada um: oito bisnetos. E por aí fora.

Avancemos então 80 gerações.

Quantos descendentes de Jesus teremos no mundo?

Aproximadamente 1 208 925 819 614 630 000 000 000.

Ora, como somos 7 400 000 000 pessoas no mundo, há muito descendente de Jesus por aí escondido.

A discrepância é fácil de explicar: entre os filhos, netos, bisnetos, hipernetos de Jesus, muitos tiveram filhos uns com os outros, claro está: o mundo é uma pequena aldeia e muito promíscua.

Seja como for, olhando para os números, é fácil de perceber que é muito provável que, tanta geração depois, todos nós sejamos descendentes de todos os seres humanos que viviam há 2000 anos atrás (excepto os que não tiveram filhos, claro está).

Os modelos matemáticos que mostram a improbabilidade de não sermos descendentes de alguém que tenha vivido na época são muito mais complexos, mas espero ter conseguido explicar razoavelmente como a matemática deita por terra a ideia de que, hoje, teríamos um só descendente de um homem que viveu há 2000 anos.

9789726627920Bem, esta revelação (que destrói ilusões de pureza familiar preservada ao longo de séculos), encontrei-a, explicada de forma muito mais rigorosa, num livro de Jorge Buescu chamado O Mistério do Bilhete de Identidade e Outras Histórias

Fiquei a saber que sou, quase de certeza, descendente de Maomé e de D. Afonso Henriques (chegue-se para lá, caro Sr. D. Duarte). Afinal, ao contrário de Jesus, ninguém duvida que o Profeta dos muçulmanos e o nosso primeiro rei tiveram muitos e bons filhos. E, se Jesus de facto teve filhos (não sabemos), também eu sou um deles, com toda a probabilidade. Eu e todos os que lêem este blogue, claro está.

Fiquei a saber isto e muito mais, porque o livro ensina-nos imenso e é divertidíssimo — e só com este exemplo da matemática a destruir lógicas dan brownianas e purezas nobiliárquicas percebemos como uma cultura menos dividida entre Ciências para um lado e Humanidades para outro pode ser bem mais humana, divertida e útil do que o tribalismo intelectual em que muitos caem.

Espero que gostem do livro que vos acabei de sugerir. Vale mesmo a pena.

Em breve, lá virá o terceiro capítulo destas minhas viagens com livros, para falarmos, por fim, da senhora que diz os nomes das estações de Londres…

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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2 comentários
  • Talvez você seja descendente desse profeta mítico e biblico a que alguns chamam Jesus. Talvez você goste de ocupar o seu tempo nessas especulações, mas por favor fique lá com a suposta herança para. Por mim, as crendices à volta do tal vosso Jesus não passam de um anacrónico e lamentável vírus histórico. Consumam-no em casa, como quem usa fraldas ou pensos higiénicos. Ninguém precisa de ser incomodado com isso.

    • Não leu bem o post, que é sobre ciência e matemática e não sobre Jesus ou religião. Escreveu o comentário antes de pensar um pouco no que leu…

      O que digo no texto é que todos somos descendentes de todos os seres humanos que viveram há 2000 anos. O uso da figura de Jesus vem na sequência da referência ao romance de Dan Brown, que tem um grande erro matemático, explicado no texto. Apenas isso.

      Mais uma vez: o texto é sobre matemática, não sobre religião.

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