Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Sorte, azar e espermatozóides

Uma crónica quer-se actual, virada para as notícias dos últimos dias. O problema é que hoje encontrei um livro antigo e deu-me para falar de espermatozóides.

O livro de que falo foi escrito por Laurence Sterne, um clérigo anglicano, no século XVIII. Um autor destes pede uma obra séria, um tratado religioso, uma admoestação moral sobre o estado do mundo…

E, no entanto, a obra começa com um casal na cama, entretido a criar o narrador — é a partir daí que se desenrola a história da vida e das opiniões de Tristam Shandy.

Ora, o tal Tristam reclama: os pais, no momento da procriação, estavam um pouco distraídos. Pouco antes do culminar, a mãe perguntou ao pai se tinha dado corda ao relógio. O pai ficou aborrecido com tal irrelevante questão, mas não deixou de cumprir o que ali tinha ido fazer, com a consequência de ter dado início à vida do filho de forma um pouco atabalhoada.

Tristam acreditava que uma pessoa nascia de um pequeno homúnculo depositado pelo pai na barriga da mãe — e nesse momento animado pelo espírito —, homúnculo que começaria então a crescer.

Cada homem transportaria, bem guardados e minúsculos, os homúnculos que viriam a ser os seus filhos futuros — e esses filhos homúnculos já teriam dentro dos seus microscópicos testículos os homúnculos dos netos, bisnetos e por aí fora. E isto, note-se, desde o início da humanidade — Adão (dir-vos-ia Tristam Shandy) tinha já toda a humanidade nos testículos. Uma chatice.

Pois bem, o homúnculo de Tristam Shandy é depositado distraidamente na barriga da mãe: a vida dum homem ficou assim definida pela trivialidade dum relógio sem corda.

Ah, mas aquilo que a ciência diz hoje em dia sobre a origem de cada um de nós é muito diferente, não é? Afinal, nós não nascemos de homúnculos: somos fruto da junção do óvulo com o espermatozóide que conseguir chegar mais depressa ao pote.

Ora, a maneira como essa junção se faz tem peculiaridades tão interessantes como imaginar toda a humanidade encerrada dentro do primeiro homem.

Para começar, como sabemos, todos nós transportamos informação escrita em moléculas de ADN enterradas no núcleo de cada uma das nossas células. Ora, quando o nosso corpo precisa de criar novas células, fá-lo através da mitose, ou seja, da divisão de uma célula em duas células iguais. Neste processo, o nosso ADN é copiado de forma integral. É assim que crescemos, curamos as feridas, regeneramos os tecidos…

Este processo acontece em todas as células — excepto no caso dos óvulos e dos espermatozóides. Estas celulazinhas muito importantes são produzidas através da meiose, que não cria duas células iguais, mas sim células diferentes com metade do ADN original. O ADN é dividido em dois — de forma aleatória!

Sim, é como uma lotaria. De cada vez que um espermatozóide é criado, fica uma metade aleatória da informação genética do homem em questão. É como se tivéssemos um baralho com milhares de cartas de onde tiramos metade ao calhar da sorte…

Em cada um dos milhões de espermatozóides que partem em busca do óvulo, a informação genética que lá vai dentro é uma amostra diferente da informação genética do homem.
Curioso, não é?

Pois, o espermatozóide que chega ao óvulo — num processo que não vale a pena aqui descrever, sob pena de ter uma crónica para maiores de 18 — encontra um óvulo que também foi criado através dessa divisão aleatória. Cada óvulo tem metade da informação genética da mãe e cada espermatozóide tem metade da informação genética do pai — metades essas escolhidas ao acaso…

Quando as duas células se encontram, o resultado é, de facto, um ADN inteiro, composto por metade do ADN da mãe (23 cromossomas) e metade do ADN do pai (outros 23 cromossomas).

Mas o curioso é que estas metades se mantêm separadas dentro de cada célula do corpo da nova pessoa: em cada uma das células do nosso corpo os 23 cromossomas maternos e os 23 cromossomas paternos continuam a existir em separado. É no momento em que, dentro da nova pessoa, se cria um óvulo ou um espermatozóide que as duas metades dos pais se misturam verdadeiramente… Os genes dum casal só se misturam completamente nos óvulos das filhas e nos espermatozóides dos filhos — e, claro, em todas as células dos netos.

Mas conto tudo isto porquê? Afinal, basta abrir um livro de biologia para saber o que acabei de descrever — e com muito mais pormenores. É verdade: mas esquecemo-nos muitas vezes do quão interessante é tudo aquilo que aprendemos, há muitos anos, na escola — ou que está à distância de um clique ou de uma boa leitura.

Os genes que nos calham em sorte dizem muito sobre nós — embora estejam muito longe de dizer tudo ou mesmo o mais importante. No entanto, muitas características físicas ou de personalidade já vêm ali inscritas — mais do que nos separar, isto une-nos a todos enquanto seres humanos: o processo é igual para todos e todos somos fruto de milhões e milhões destas misturas ao longo de milhões e milhões de anos (tudo isto começou muito antes de haver seres humanos). O que diferencia cada ser humano e aquilo que nos une a todos é extraordinariamente mais importante e relevante do que aquilo que divide os grupos de seres humanos — e, no entanto, é tão fácil cair na tentação de procurar identidades colectivas baseadas em características físicas e genéticas.

Voltamos ao início e aos pais de Tristam, na cama, a criarem o filho. Há ainda mais uma reviravolta. Não descendemos todos de homúnculos enfiados uns nos outros e que se foram libertando desde Adão até hoje — mas, nas células, existe material genético fora dos cromossomas: é o ADN das mitocôndrias, uns pequeníssimos organismos (na verdade chamados «organelas») que existem dentro das nossas células e que passam das mães para as filhas e filhos de forma inalterada, através dos óvulos. As mitocôndrias que estão nas minhas células são praticamente iguais às da minha mãe. Já as mitocôndrias dos homens não são transmitidas aos filhos. Ou seja, a sucessão de pequenos organismos que se transmitem pelas gerações fora existe — mas está do lado das mães e não dos pais.

Tristam Shandy teria sido resultado da junção o óvulo da mãe e do espermatozóide do pai (não foi porque é fruto da imaginação de Sterne) — o que significa que teria bastado um pequeníssimo movimento diferente dos pais durante a dança íntima que o criou para a metade paternal ser o espermatozóide do lado ou outro qualquer de entre os milhões de bicharocos. Em conclusão: a pergunta que a mãe de Tristam fez ao pai sobre a corda do relógio mudou mesmo o filho para sempre. Tivesse feito outra pergunta ou tivesse estado calada — e o filho seria outro. E não tivesse eu passado os olhos pelo magnífico Tristam Shandy ali na estante e a crónica seria sobre outra coisa qualquer…

(Crónica no Sapo 24.)

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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