Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Cinco surpresas de Nova Iorque

Prometi aventuras — ataques no Central Park, russos de ar perigoso… — e terei de cumprir. Nem sabem o que vos espera, digo-vos já. E, sim, isto é uma ameaça.

Mas ainda não será desta. Hoje, neste segundo episódio das minhas viagens à terra dos outros, quero alimentar um pouco a mania das listas que anda por aí. Somos uma espécie muito estranha. Até neste humilde blogue escondido num recanto da internet portuguesa, é certo e sabido: se o título do artigo tiver um número («Sete palavras disto ou daquilo…») tenho partilhas e gostos em barda.

Tento não abusar. Mas um blogue faz-se para se ler. Se os leitores gostam de listas, de vez em quando dou-lhes listas.

Pois bem, antes das grandes revelações sobre o mundo e o universo que descobri nas ruas de Nova Iorque, deixo-vos aqui cinco surpresas que a Zélia e eu tivemos ao chegar à cidade.

Antes da primeira surpresa, um pequeno relato: estávamos nós na fila para passar pelos serviços de estrangeiros lá do sítio, para mostrarmos o passaporte e sentirmos aquele pequeno formigueiro do estilo «será que me vai sair dali um polícia daqueles gigantescos e mandar-nos ao chão porque o passaporte tem um problema?», quando percebemos que à nossa frente estava uma pessoa vagamente conhecida. Aliás, muito conhecida em Portugal e desconhecida no resto do mundo (o que, em média, justifica o «vagamente»).

Mal sabia o polícia que tinha perante si aquele que viria a ser um dos homens mais importantes do planeta e, quem sabe, de Nova Iorque!

Avancemos. Saímos do aeroporto, pusemo-nos num comboio e toca de aviar surpresas:

1. O tamanho de Manhattan

Estávamos a aproximarmo-nos de comboio e a Zélia agarrou-me no braço: olha, olha!

A segunda fotografia mais mal tirada de todos os tempos.

E lá ao fundo apareceram os prédios da ilha. Aquela paisagem que todos conhecemos — com aquela famosa falha que ainda não tinha sido consertada com a nova torre.

A verdade é que o raio da ilha impressiona — e impressiona mesmo quem já vai preparado. Vemos filmes, fotos, livros… E mesmo assim o gigantismo daquilo é inacreditável, quando aparece no horizonte a quem vem de comboio do aeroporto de Newark, entre armazéns e ruas sujas.

Perante aquilo, todos somos provincianos. E todos nós reconhecemo-nos um pouco naquela paisagem — mesmo o mais empedernido dos anti-americanos. Aquilo não é uma cidade estrangeira: é outra coisa, uma paisagem que vem do fundo da nossa infância, dos filmes, das bandas desenhadas — e é também a cidade por excelência, no seu excesso e na sua concentração e na aflição por chegar às nuvens.

Sim, aquilo é Manhattan, Nova Iorque, mas também Gotham — e é ainda a cidade de todos nós.

Lá fomos. Chegámos a uma estação subterrânea, andámos às voltas, encontrámos a saída e vimo-nos no meio da mais famosa ilha do mundo…

2. As ruas estão sempre à sombra

Os prédios altos, cá pela Europa, são uma espécie de amostra mal semeada de arranha-céus. Já foram a La Defense, em Paris? E Canary Wharf, em Londres? Não deixam de ser uma coisa mais ou menos interessante, mas não são essenciais àquelas cidades. São, como diriam os ingleses ou os americanos, um afterthought. Por cá, gostamos de cidades na horizontal — e um café a seguir. Estou a generalizar, eu sei.

Pois, em Manhattan, os prédios são gigantescos. São desmesurados. São para lá de altos. Tentam mesmo arranhar o céu. São monstros de vidro ou pedra ou o que for. Estão aflitos por olhar por cima do prédio da frente.

Bem, acho que me estou a repetir. Avancemos para a segunda surpresa: durante muitas horas do dia, na rua, andamos na sombra. Não há luz directa, ou há apenas em certos sítios, onde o alinhamento dos prédios dá uma folga ao sol.

Mas não pensem que isto torna a cidade pesada. As avenidas são largas. Os parques são muitos. E andando um pouco chegamos ao rio, que envolve Manhattan. Depois, o sol a bater nos vidros os prédios não é coisa para deitar fora…

3. O cheiro a comida

Há restaurantes, carrinhos de comida, pequenas lojas com manjares de todo o mundo… Os cheiros ficam ali presos entre os prédios, enrolam-se uns nos outros e de repente temos uma cidade que nos deixa com água na boca em todas as esquinas. Ou seja, Nova Iorque é apetitosa de forma muito concreta.

Restaurantes chineses, gregos, portugueses, turquemenistanos. O mundo inteiro ali, sem dúvida. Misturado, como os fumos das cozinhas no ar apertado entre os prédios. Parece enjoativo, assim à distância? Admito que sim. Mas na vida real, no frio de Setembro, apetecia-nos viver aquela cidade por uns dias. Foi isso que fizemos, continuando a andar sem medo até ao hotel. Éramos turistas, sim, essa condição tão rasteira… Mas também éramos um casal contente por visitar uma das cidades das nossas vidas.

4. Os sapatos nas mãos

Ora, quem diria? Andamos pelas ruas tão cheias de gente como vemos nos filmes e vemos pessoas de sapatos na mão.

Porquê?

Porque têm de andar muito para chegar ao trabalho e preferem, assim, ir de ténis. Chegam ao escritório e toca de trocar para sapatos mais adequados aos trabalhos importantes das gentes de Manhattan.

Porque Nova Iorque é enorme e convém mesmo ir com calçado confortável — o que vale tanto para turistas como para nova-iorquinos de gema.

Nós percebemos bem isso logo nessa lenta caminhada até ao hotel. No mapa, parecia que estávamos a poucas ruas do hotel. Pensámos: bem, podemos ir a pé. E lá fomos. Andámos. Andámos. E andámos mais. Malas atrás, suor a escorrer. Gente a olhar para nós com pena.

Mas não desistimos e chegámos. Tínhamos percorrido umas míseras duas ruas e andado mais quilómetros do que aconselha a fraqueza humana. Ao nosso lado, táxis até mais não e gente a passar por nós de sapatos na mão. E nós espatifados logo no primeiro dia.

Porque, em Nova Iorque, todos andam a pé — e andam que se fartam.

 

5. Um hotel no centro do mundo

E pronto, cansados mas a sorrir, chegámos ao hotel, na 42nd Street virada a este. Estávamos, de repente, no centro do mundo. Porquê? Porque tínhamos calhado mesmo na semana da Assembleia Geral das Nações Unidas. E o edifício da ONU era mesmo ali ao lado.

Passavam por nós carros da segurança, havia ruas interrompidas, polícias enervados e calmos diplomatas de todo o mundo. Na entrada do hotel, ouvíamos línguas disparatadas. O mundo estava todo ali.

Quando nos pusemos na fila do check-in ficámos de boca aberta: ali mesmo à nossa frente estava a mesma pessoa que tínhamos encontrado na fila da fronteira no aeroporto, como se toda aquela viagem por Nova Iorque, entre fumos de comida e gente de sapatos na mão, não tivesse acontecido e, no fundo, tivéssemos andado uns míseros metros no aeroporto.

E quem era ele? Ora, não é difícil: que português tem de ir, de há anos para cá, a todas as assembleias gerais da ONU? Aquele que hoje se prepara para ser o Secretário-Geral da dita organização… Na altura, poucos nova-iorquinos saberiam quem era ele. Pois bem, a partir de de Janeiro, será o mais importante dos residentes da cidade. Isto porque em Nova Iorque nem sequer vive o Governador: a capital do Estado de Nova Iorque é Albany. Nova Iorque não é a capital de nada — só do mundo. E ali estava ele, o futuro Secretário-Geral, a fazer check-in no nosso hotel. Ao lado, uns japoneses enervavam-se com uns polícias gigantescos. Ah, Nova Iorque…


Vista do quarto. Esta é, provavelmente, a fotografia mais mal tirada de todos os tempos.

Fomos para o quarto. Ligámos a televisão — estava a dar publicidade. Abrimos a janela. Estava a dar o Empire State Building. Mas tudo isso fica para outro dia. Como também ficará para outro dia dizer-vos os estranhos segredos que se descobrem num quarto nova-iorquino…

(Já agora, para vos deixar água na boca: no dia seguinte, fomos ao Central Park — e fomos barbaramente atacados! Mas já não vimos o Guterres.)

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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2 comentários
  • Estive lá em 92 e… lembro-me perfeitamente de pensar “Afinal, os prédios não são assim tão altos quanto pensava! Até chega luz/sol ao chão!”

    Mas aceito que o sol surgisse apenas nesses intervalos que reeferes, ou então, terão subido um pouco mais desde essa data…

    • Isto cada um, sua cidade! 🙂 Talvez também tenha a ver com a rua exacta onde estávamos quando, cada um de nós, pensou o que pensou. Ali pela 42nd Street, não havia sol que se visse…

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