Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Tantos «doutores», não é?

  
Anda por aí a circular um artigo indignadíssimo com o tratamento por «doutor» de que tantos licenciados gozam por esse país fora.

Confesso que esse hábito de usar o título «doutor» (convencionalmente abreviado para «dr.») também me intriga e irrita.

Mas convém olhar para a situação sem tanta vontade de desancar nos conterrâneos: o hábito está a cair em desuso com o passar das gerações. Tenho 30 e alguns anos e não tenho um único amigo licenciado que insista em ser tratado por «doutor». Aliás, ficamos todos incomodados com a insistência de bancos e afins em usar o tal dê-erre-ponto nos cartões.

Ou seja: se os portugueses são parolos por terem este hábito, estão a ficar cada vez menos parolos… Faltou dizer isso no artigo.

O autor continua a desancar nos portugueses, desta vez nos professores universitários, por insistirem em ser tratados por «professores doutores». Ora, não conheço nenhum professor que insista em tal tratamento na oralidade — quanto à escrita, títulos académicos há em todos os países… Parolo é usar esses títulos fora do contexto, como certos vendedores de banha da cobra norte-americanos, que usam o título «PhD» nos nomes com que assinam os seus livros ou e-mails pessoais.

Na realidade, no dia-a-dia e na oralidade, os professores universitários são tratados, pelos alunos, por «professor», independentemente do grau académico que tenham. Sendo a forma comum de tratamento dos docentes desde a primária até à universidade, não me parece que venha mal ao mundo por isso.

(Na escrita, já levei raspanete por me ter esquecido do «Prof. Doutor» num certo e-mail, raspanete esse que me deixou divertidíssimo. Mas o problema teve mais a ver com o choque cultural entre gerações de hábitos muito diferentes do que com características dos portugueses em geral.)

O autor desanca ainda nos estudantes de doutoramento com bolsa da FCT, o que já me parece estar a bater em quem não merece minimamente a pancada.

Em suma: o artigo goza com um hábito estranho dos portugueses, mas já está a bater num moribundo. E mesmo que sobreviva muitos anos, já não se sente nas gerações abaixo dos 40 (?) aquele festival de doutor para aqui e doutor para aí que todos conhecemos.

Há aspectos mais interessantes na forma como os portugueses se dirigem uns aos outros: o tratamento oblíquo («o senhor doutor quer um cafezinho?», «a Marta sente-se bem?», «o avô já viu isto?»), a proibição de usar o «você» em certos contextos (mas não noutros) — e muito mais. Isto dava um livro (que provavelmente já foi escrito por algum infeliz bolseiro da FCT).

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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2 comentários
  • “Há aspectos mais interessantes na forma como os portugueses se dirigem uns aos outros: o tratamento oblíquo («o senhor doutor quer um cafezinho?», «a Marta sente-se bem?», «o avô já viu isto?»), a proibição de usar o «você» em certos contextos (mas não noutros) — e muito mais. Isto dava um livro (que provavelmente já foi escrito por algum infeliz bolseiro da FCT).”

    Lindley Cintra escreveu “Sobre Formas de Tratamento na Língua Portuguesa” (Livros Horizonte), que, embora não sendo a palavra final sobre o assunto, é um bom ponto de partido.

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