Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

«Tenho aversão a ler em brasileiro.»

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Li esta frase num comentário no Facebook. No contexto, percebia-se que o autor tinha orgulho no que estava a dizer. De alguma maneira, ter aversão a ler em português do Brasil é, na cabeça daquela pessoa, uma maneira de defender a nossa língua ou de demonstrar o amor pela mesma.

Não sei bem o que dizer perante isto.

Racionalmente, convém pensar no porquê destas constantes declarações de aversão ao português do outro lado do oceano. Será medo de uma qualquer infecção da nossa língua, pura e donzela? Será xenofobia mal disfarçada? Será apenas uma reacção emocional muito mal pensada?

Não sei. Mas sei que esta é uma limitação que muitas pessoas impõem a si próprias e que não faz sentido. Mesmo que tenhamos uma reacção quase alérgica às outras maneiras de falar e escrever português, podemos pelo menos lutar contra essa reacção. Imaginem que alguém vinha declarar, orgulhosamente, aversão a ler em inglês, em espanhol, em francês… Todos acharíamos estranho. Então, por que razão será menos estranho declarar aversão a ler em português (embora tropical)?

Gosto mais de tentar abrir os nossos olhos às línguas que nos rodeiam. Àquelas línguas que estão aqui mesmo ao nosso lado, linguisticamente falando. Mesmo se acharmos que o «brasileiro» já é outra língua (não concordo, mas admito que a discussão é interessante e a resposta está longe de ser óbvia), não deixa de ser uma língua próxima, que nos interessa, em que podemos ler e alargar as vistas sem passar por todo o processo de aprender uma nova língua. O mesmo se passa com o galego e, em menor grau, com o espanhol, com o catalão e, no fundo, com todas as línguas latinas (até o romeno, embora esse já exija um esforço bem mais pesado).

Em vez de nos orgulharmos das nossas limitações, que tal tentarmos ultrapassá-las?


Só para dar um pequeno empurrão a quem tem esta aversão, proponho que leiam só o início de Dom Casmurro, de Machado de Assis:

Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da Lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso.

— Continue, disse eu acordando.

— Já acabei, murmurou ele.

— São muito bonitos.

Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que não gostam dos meus hábitos reclusos e calados, deram curso à alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, e eles, por graça, chamam-me assim, alguns em bilhetes: “Dom Casmurro, domingo vou jantar com você”.— “Vou para Petrópolis, Dom Casmurro; a casa é a mesma da Renânia; vê se deixas essa caverna do Engenho Novo, e vai lá passar uns quinze dias comigo”.— “Meu caro Dom Casmurro, não cuide que o dispenso do teatro amanhã; venha e dormirá aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhe cama; só não lhe dou moça”.

Aversão a isto? Porquê?

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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13 comentários
  • É curioso porque nos círculos onde me movo, sou galego, temos uma imensa curiosidade por todos os portugueses, o do Brasil, o da Angola, ou de Portugal, todos. Será que estamos habituados ao polimorfismo e em Portugal nem tanto. Sei lá.

    • Sei lá. Percebo uma animosidade desnecessária e contraproducente entre portugueses e brasileiros (principalmente dos primeiros em relação aos últimos) que parece nunca acabará. Quem perde são as duas partes, que poderiam ser mais próximas. No Brasil, noto que cada vez se vira mais às costas a Portugal, inclusive a suas manifestações culturais e artísticas.

  • Imagine um americano só lendo inglês americano.Um espanhol que apenas se interessa pela variedade espanhola.Há formas de pensar que nos diminui.
    Enquanto o mundo admira a beleza da língua portuguesa,ficamos com estas picuinhas.

  • O exemplo não foi o melhor exemplo. O português de Machado de Assis está muito longe de ser o português brasileiro contemporâneo.

    Aqui um exemplo contemporâneao, Daniel Galera:

    “Quando eu tinha treze anos, passei na frente de uma puta numa rua fuleira do centro. Eu nem tinha visto ela parada ali. Quando eu passei ela pegou meu braço e disse vamos fazer não sei o quê, e eu me esquivei e disse que não queria fazer porra nenhuma, aí ela me mandou à merda e perguntou se eu tava com medo. Mulherzinha asquerosa, saí andando rápido. É claro que eu tava com medo, que que ela tava pensando? Quando virei a esquina, um cachorro veio pra cima de mim latindo, tentando me morder, cachorro filho da puta, e pela primeira e última vez eu fiz mal a um cachorro, eu chutei aquele cachorro, pra ele parar de latir. Ele voou uns dois metros e parou, mesmo. Hoje o prédio da empresa em que trabalho fica a três quadras daquela esquina, eu já passei ali várias vezes e não há nem putas nem cachorros. E eu não tenho mais medo de nada.”

    • São ambos exemplos de português do Brasil. Também em Portugal a literatura contemporânea tem casos de linguagem muito mais popular e «diferente» da norma. O que o artigo critica é a aversão genérica em ler português do outro lado do oceano: mais popular, menos popular… Obrigado, já agora, pela citação, muito interessante.

  • Desde o indígena brasileiro semi-alfabetizado ao mais interiorano de Portugal falamos todos a mesma língua e sempre vamos,nos entender em maior ou menor grau, acho maravilhoso poder conhecer nuances do idioma mais rico do mundo!!!!!!!

  • A resposta é medo e ignorancia. Medo de que o papao nos coma. O Elefante espezinha o rato. Nao há certo ou errado, ha dois lados diferentes, mas muito semelhantes.

    A lingua tem vida e é autónoma, nao se aprisiona por nenhum grupo falante..ela evolui pelo tempo e pelo espaco e nao pertence a ninguém.

    Nao vale a pena estrabuchar…a lingua encontrará o seu caminho, tal como água desagua no rio….

    (Desculpem a falta de acentuacao, estou sem com teclado estrangeiro)

    • Sérgio, você matou a pau! Foi no tutano do osso! A língua é mesmo esse bicho indomável e porreta que vai entrando, muda aqui e ali, se recria e vai chutando lata, sempre em frente! De minha parte, brasileiro baiano, ADORO ouvir o português de Portugal. Adoro o fado e a cultura portuguesa. Onde mais ouviria eu a belíssima expressão “Algarves de ternura”, a não ser num fado d’Amália, a Grande?

      Acompanho um pouco a neura portuguesa a respeito do acordo, o que entristece-me. Relaxemos… A língua não tem donos. É de todos nós! A diferença nos enriquece.

      Parabéns ao autor do post, muito ponderado e aberto.

      No mais, deixemos a bicha (não a fila, mas a língua) solta! Ela haverá de achar seus caminhos!

      Axé babá!

  • Não se engane, Marco: não faltam brasileiros que também têm aversão ao português de Portugal, falado ou escrito. Dizem que não compreendem, que as palavras são estranhas, que a sonoridade das frases é outra, etc, etc.
    Mais de um colega de mestrado e doutorado reclama quando tem de ler um artigo em PT-PT.
    Quanto ao idioma falado, melhor nem comentar: a quase totalidade dos atores portugueses que tenta espaço no Brasil precisa, obrigatoriamente, fazer um curso de fonética.
    Imbecis há nos dois lados, pode crer. Aí está o nosso maior problema.
    Um abraço

    • De imbecis o mundo está cheio, por que não os estaria também Brasil e Portugal ? No mais são as diferenças que nos tornam encantadores aos ouvidos do mundo. Sou brasileira e já li no português europeu e lhes digo há uma ou outra expressão que não tem todo o sentido para mim, mas ouvir o idioma português em qualquer de suas variações inclusive as africanas continua a ser uma das mais lindas experiências dessa vida.

  • Li e analisei com cuidado seu artigo bem como me detive no tema dele. Sou professor de História de Língua Portuguesa há 45 anos, mergulhado em discutir e ensinar as variações linguísticas, notadamente da línguas portuguesa. Ora, uma língua fala e escrita em três continentes não podeira, de forma alguma, manter-se impermeável à atração de acomodações, influências e construções de neologismos. Não consigo somente entender por que o cidadão que atacou a língua portuguesa do Brasil não enveredou para examinar a mesma língua em províncias de Portugal, nas Ilhas do Cabo Verde, em Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Tomé e Príncipe, Timor Leste, Goa e em outros países em que a diversidade tornou-se muito mais acentuada. Não sou adepto da separação, criando uma denominação de Língua Brasileira. Isto implicaria voltar as costas para a História que entrelaça Portugal e Brasil.

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