«Fazer piscinas» sabe bem

Há uns dias, estive numa piscina com a minha mulher. Estava mais quieto do que o habitual, a tentar adaptar-me às lentes de contacto (depois do episódio que já contei por aqui).
A Zélia vira-se então para mim e diz: «Costumas gostar de fazer umas piscinas…»
Sorri e pus-me a nadar. Sim, é verdade: é bom fazer piscinas. Fico bem-disposto.
Enquanto nadava, comecei a pensar. A expressão «fazer piscinas» é curiosa. Naquele contexto, é uma forma familiar de dizer «nadar todo o comprimento duma piscina». Noutro contexto, quererá dizer «construir uma piscina». A nossa cabeça dificilmente se atrapalha: pega numa palavra e estica-a para apanhar uma série de significados e de nuances, usando para isso tudo o que encontra à volta.
O verbo «fazer» quer dizer tantas coisas! Desde «cortar» (em «fazer a barba») até ao tal «nadar» (em «fazer piscinas»). É um belo monstro semântico — e uso «monstro» no bom sentido. Isto é mau? Claro que não! Só alguns obcecados por uma língua simplificada e quadrada não gostam da maleabilidade do português — e de todas as outras línguas.
É favor não arrancar as pontas dos dedos!
Chegamos então ao verbo «tirar» é às impressões digitais… Já me aconteceu ouvir pessoas muito preocupadas com a expressão «tirar as impressões digitais». Na cabeça dessas pessoas, um funcionário que diga ao incauto cidadão «agora tenho de lhe tirar as impressões digitais» está a incorrer num gravíssimo erro de português. O certo seria sempre «colher (ou recolher) impressões digitais».
Porquê este medo arbitrário do verbo «tirar» com sentido de «recolher»? Não sei bem. Talvez porque a estas pessoas lhes faça impressão o facto de haver verbos que mudam de sentido conforme o contexto. Talvez porque inventem uma ambiguidade fantasma, imaginando um cenário em que tirar «impressões digitais» quisesse dizer «retirar as pontas dos dedos a alguém». Estará o tal funcionário do registo civil, quando diz ao cidadão «vou-lhe tirar as impressões digitais», a informar que o passo seguinte é cortar-lhe a pele das pontas dos dedos? Um filme de terror, não haja dúvida!
Tirar fotografias e outros medos

Um terror, na verdade, é esta visão da língua, que lá vai fazendo o seu caminho, estragando a relação dos portugueses com o português.
Enquanto os engenheiros informáticos andam, com esforço, a tentar elevar os computadores ao nível de inteligência dos nossos cérebros (e ainda estão tão longe…), estes «defensores da língua» (aspas bem sublinhadas!) parecem querer baixar a inteligência humana ao nível dum robot, que só percebe as palavras se estas tiverem um significado fixo, imutável e único.
Estes simplificadores compulsivos parecem ainda estar sempre a tremer de medo das ambiguidades absurdas. Como se eu, ao dizer a um amigo «vou-te tirar uma fotografia», arriscasse ver o meu amigo a fugir, pensando certamente que lhe quero roubar a fotografia que ele tem na carteira…
As palavras mudam de significado conforme a pessoa, a hora do dia, a época, o contexto… Sempre assim foi e sempre assim será — porque somos seres muito pouco mecânicos e usamos as palavras de forma orgânica, mudando-lhes o significado a cada uso e cosendo esse mesmo significado às outras palavras, aos nossos gestos, ao piscar dos nossos olhos. E fazemos isto a várias vozes, o que só não espanta quem estiver muito distraído…
Fiquei nervoso ao ler tudo isso. Fui correndo tirar a pressão.
Gostei imenso deste seu texto sobre a utilização do verbo fazer. Entretanto, ocorreu-me uma frase que costumo ouvir aos relatores de futebol e que gostaria que me esclarecesse se pode ser considerada correcta: ” Meteu a bola para fora.”
Muito obrigado.
Melhores cumprimentos
Há mais algumas expressões, relativamente recentes, que me fazem sempre “comichão” quando as oiço (ou ouço?):
“Dar festinhas”. Talvez esteja errada mas sempre utilizei “fazer festinhas”.
“Dar missa”. Não deverá ser “dizer missa”?
E há um terceiro erro que também entra neste grupo, mas por outras razões: a má utilização que muitas pessoas, mesmo cultas, fazem dos verbos “haver” e da expressão “a ver”.
Cara Isabel,
Não sei que sentidos têm essas expressões em Portugal, mas, no Brasil, dá uma festa quem a organiza e convida os amigos para dela participarem, enquanto faz festinhas quem faz cócegas ou um carinho a alguém, como em “A criança riu-se toda com as festinhas que lhe fez a mãe na barriga”; reza-se ou diz-se missa (é mais comum ouvir “rezar missa” que “dizer missa”). Bem, quanto ao verbo haver, no Brasil, morreu na fala, até mesmo das pessoas cultas, exceto em situações formais, pois todos usam ter com sentido existencial, embora sobreviva na escrita; “a ver” era taxado de galicismo, em Portugal e no Brasil, mas já se aceita, em vez de “que ver”, em “ter que ver”.