Há coisas que me irritam e uma delas é a arrogância de quem insulta os outros por questões de língua portuguesa. Mas aquilo que me deixa mesmo fora do sério é a arrogância de quem acha que sabe, afinal não sabe, mas gosta de insultar os outros (que se calhar até sabem).
Querem um exemplo concreto?
No Observatório da Asneira, alguém postou esta imagem:
O comentário que o autor do post pôs por cima da imagem? Este: «Quando o analfabetismo se sobrepõe a uma língua estabilizada!»
Não faz por menos: acusa logo os outros de analfabetismo! (E os comentários por baixo da mensagem continuavam na mesma senda do gozo e do insulto.)
Tudo isto porquê? Porque o autor da imagem escreveu «Netuno» e não «Neptuno».
Pois, na verdade, a imagem é brasileira e em português do Brasil a palavra «Netuno» está correctíssima.
Os analfabetos brasileiros não escrevem assim (aliás, os analfabetos, por definição, não escrevem). Quem escreve assim é qualquer pessoa que saiba escrever em bom português do Brasil.
Ora, erros todos damos e o autor do post tem todo o direito de errar.
Mas o estranho é isto: depois de alguém dizer que a imagem está correcta, tanto o autor do post como os comentadores cheios de raiva com a ignorância do mundo não admitiram o erro e continuaram a chamar de analfabetos quem escreve correctamente em português do Brasil.
Argumentos? Poucos. Que tenha visto, apenas este: os nomes são todos iguais em Portugal e no Brasil. Só é pena ser um argumento absolutamente errado: há vários nomes que têm uma forma brasileira e outra portuguesa.
Ou seja, os comentadores da imagem não só se mostraram arrogantes, como revelaram ignorância de como funciona a língua — e ainda fecharam a porta a aprender alguma coisa, continuando o festival de insultos a quem escreve correctamente.
É por isso que, antes de mostrar sobranceria e acusar os outros de analfabetismo, é aconselhável dar o benefício da dúvida e ir investigar antes de insultar — e olhem que mesmo que a imagem estivesse errada, os insultos não ajudam ninguém (mais valia mandar uma mensagem privada a avisar do erro o dono da página).
Porque trouxe este exemplo para aqui? Porque é um caso extremo de histerismo linguístico misturado com ignorância, com alguma estranha ânsia de insultar alguém que se limitou a escrever como aprendeu na escola.
É caso para dizer: antes de atacar a língua dos outros, pare, escute e olhe!
O que é isso do Português do Brasil?
É a língua falada no Brasil (tal como o inglês americano é a língua falada nos EUA).
Não há Português de Angola, Português de Moçambique, etc…
Já se perguntou por que haverá português do Brasil?
Saberá, por acaso, o que está por trás deste “português do Brasil?»
Não sou de forma alguma perita nem grande conhecedora do assunto, mas devo dizer que fiquei algo curiosa. Os escritores clássicos brasileiros não escreviam em português, português?? Em que altura surgiu então esta adaptação, se assim lhe podemos chamar, do português ao português-abrasileirado??
Obrigada por me esclarecer.
Cara Ana, o português sofreu modificações tanto lá como cá. No que toca aos textos muito formais, ainda hoje a distância é mínima. O português popular, esse já é muito diferente dum lado e doutro do Atlântico. Houve um afastamento gradual das duas variantes. Mas irei tentar contar o melhor possível essa história nos próximos episódios da História Secreta da Língua Portuguesa, cujos primeiros episódios estão aqui no blogue. 🙂
Obrigada, Marco, por este seu artigo, focando-se apenas num exemplo de insulto arrogante que, quase apostava, visaria criticar o novo A.O.
Passo a explicar: um dos argumentos contra o novo acordo relaciona-se com a recente eliminaçao das consoantes mudas na variante portuguesa, tal como “recetivo” (em Portugal) e “receptivo” (no Brasil, mantendo o ‘p’ que se pronuncia).
Aqui, na palavra hipercorretiva ‘Netuno’, tenta-se denegrir o AO, mostrando que agora o nome do planeta passaria a pronunciar-se e a escrever-se erradamente nas duas variantes “Netuno”. Outros exemplos semelhantes se inventaram, sendo os mais comuns o”pato” em lugar de “pacto” ou o “fato” em vez de “facto”, formas que passariam a ser, segundo outros insultos ignorantes, erradamente comuns nas duas variantes linguisticas.
Cara Helena, muito obrigado! Sim, parece-me que este insulto tinha como alvo, erradamente, o acordo ortográfico. Mas o facto é que, no Brasil, “Netuno” é a forma correcta antes e depois do acordo.
Uma nota: preocupa-me um pouco que essa ignorância sobre os factos do acordo esteja a levar a que muita gente escreva, efectivamente, “fato” em vez de “facto” e “contato” em vez de “contacto”. Há quem diga que estes erros têm como origem o próprio acordo, que desestabilizou o sistema ortográfico.
Quem desestabilizou foram os que se opuseram frontalmente ao novo acordo, sem o terem lido! Por ignorância, e para o ridicularizar, acharam por bem utilizar os argumentos que o Marco refere, como forma de desdém. O objetivo era evidente: confundir, desestabilizar, para pôr as pessoas que não o leram a esgrimir falsas regras do acordo contra os que na verdade as conheciam. Isto não significa que eu esteja a favor deste acordo e muito menos com as circunstâncias em que surgiu!
Eu não tenho por hábito insultar, não mesmo, mas, algumas vezes comento publicações feitas por portugueses que se limitam a copiar imagens vindas do Brasil. Isto porque há expressões usadas do Brasil que subvertem completamente a língua: quando eles escrevem caminhão, já tenho comentado que um “caminhão” é um caminho grande, assim como um “bilhão” deve ser uma bilha enorme. Lamento se escandalizo alguém, é que hoje a comunicação está em todo o mundo em simultâneo.
Obrigado pelo comentário.
Tal como os ingleses sabem que os americanos têm expressões diferentes (como “autumn” em vez de “fall”), nós também não perdemos nada em perceber que a língua portuguesa não é igual em todo o mundo. Não vejo nisso nenhuma subversão da língua, apenas um facto comum a todas as línguas internacionais: os vários povos que as falam vão caminhando em sentidos diferentes, levando a um afastamento gradual. O inglês dos EUA também não é um inglês subvertido. É apenas um inglês diferente.
Será prejudicial que os portugueses partilhem imagens e textos brasileiros? Acho que é um medo excessivo e uma forma de limitar o nosso mundo. Afinal, se podemos ler textos brasileiros (e, já agora, galegos), porquê recusá-los só porque têm algumas palavras e construções diferentes?
Já escrevi sobre o assunto no artigo: https://certaspalavrasnet.wpcomstaging.com/tenho-aversao-ler-em-brasileiro/
Há já algum tempo que cunhei um termo para essas pessoas; chamo-lhes “os justiceiros do facebook” e é(-me) indiferente se eles escrevem no facebook ou no instagram, ou nos comentários de jornais. Continuo a apelida-los de “justiceiros do facebook”.