Sim, o que tenho para vos dizer hoje é algo estranho: era bom que lêssemos todos como lêem os tradutores.
O que quero dizer com isto?
Simples: o tradutor lê, em primeiro lugar, para perceber as ideias de quem escreve. Suspende por momentos a irreprimível tendência para criticar e impor as suas próprias ideias e preconceitos no texto que está à frente.
Não é possível fazer isto a 100%, como sabemos. A objectividade pura é coisa que não existe. Mas isso não é desculpa para desistir — e o tradutor, diga-se o que se disser, tenta. Pelo menos, direi eu, os bons tradutores tentam.
Ora, podem responder-me os leitores menos generosos, não seria melhor afinarmos o espírito crítico e atacar de imediato as ideias que nos põem à frente?
Talvez. Peço-vos, no entanto, que considerem o seguinte: o espírito crítico é essencial, mas primeiro temos de saber ouvir as ideias dos outros de forma o mais generosa possível. Só se tentarmos ouvir, podemos depois criticar. A nossa tendência é criticar primeiro e ler depois.
Por tudo isso, digo-vos que o tradutor representa o tal leitor generoso, aquele que lê o que tem à frente da melhor forma possível, que não está logo com sete pedras na mão para atacar as ideias dos outros.
Mais: o espírito crítico tem de se aplicar em primeiro lugar às nossas próprias ideias — e não tanto às ideias dos outros. Ou melhor, tem de se aplicar a todas as ideias, mas como temos tendência para confiar em demasia nas nossas ideias e desconfiar à partida das ideias dos outros, mais vale compensar essa tendência e desconfiar mais das nossas ideias e dar uma oportunidade às ideias dos outros. (Note-se que convém incluir no conjunto das «nossas ideias» as ideias daqueles em quem confiamos e as ideias típicas dos nossos grupos — família, partido, clube, religião, etc. Todas estas ideias que são nossas merecem que estejamos especialmente atentos, porque confiamos demasiado nelas. Não quero dizer que estejam necessariamente erradas: quero dizer apenas que temos tendência para baixarmos as guardas perante as ideias dos nossos.)
Em suma: o tradutor lê e tenta ser fiel ao que diz o outro. Para isso, tem de compreendê-lo, tem de ser generoso. Pode, depois, perceber que não concorda e atacar implacavelmente aquilo que lê. Mas esse primeiro gesto de leitura generosa é muito importante — e tão, mas tão difícil…
Concordo com a sua noção de que o leitor deve ser generoso; acho que muitos vêem a leitura como um duelo, quando devia ser como um par de dança.