Estive a ver o primeiro episódio duma nova série americana: Sobrevivente Designado. Um ataque terrorista durante o discurso do Estado da União mata toda a estrutura de governo dos E.U.A. Morre o presidente, o vice-presidente, os ministros e todos os congressistas. Ah, e ainda os juízes do Supremo Tribunal, para não se ficarem a rir.
Todos, não: há sempre um ministro que se mantém escondido para que os E.U.A. não fiquem sem governo em caso de ataque (e é mesmo verdade: esse sobrevivente designado existe na vida real).
Ora, mas nada disto interessa. Aliás, interessa, mas vejam antes a série, que um post num blogue não é substituto para tal prazer.
O que me traz aqui é outra coisa: a certa altura, o tal sobrevivente designado, entretanto alçado a presidente, recebe um telefonema de condolências do «prime-minister», que todos percebemos ser o chefe de governo do Reino Unido.
O tradutor fez uma coisa engraçada: traduziu por «primeira-ministra». Nada a apontar, claro. Afinal, hoje temos mesmo uma primeira-ministra em Londres — mas imagino que, tivesse a série sido lançada em Maio, a tradução teria sido «primeiro-ministro».
Isto é apenas para vos apontar um aspecto pouco conhecido do trabalho de tradução: às vezes, temos de definir algo que, no original, é ambíguo — e tudo por causa da maneira como cada língua funciona. Há certas ambiguidades que o tradutor tem de resolver — e por isso a tradução implica quase sempre fazer escolhas. Estas escolhas podem ser discutíveis, claro está — mas não há tradutor que lhes possa escapar.
Lembrei-me agora doutro caso em que o tradutor tem de escolher o sexo do primeiro-ministro britânico. Num dos livros de Ian McEwan — The Child in Time — há uma personagem chamada «prime-minister».
O livro foi publicado nos anos 80, mas passava-se num futuro pouco distante (se bem me lembro, no final dos anos 90). O sexo do primeiro-ministro era importante: será que nesse futuro Margaret Thatcher ainda seria a primeira-ministra? De certa maneira, a leitura mais ou menos política da obra dependia desse pormenor — mas Ian McEwan nunca dá a resposta. Já a tradutora portuguesa teve mesmo de fazer a sua escolha…
Diga isso aos tradutores escandinavos. Quando veem avô e avó (em qualquer língua), têm de optar entre farmor (mãe do pai), mormor (mãe da mãe), farfar (pai do pai) e morfar (pai da mãe). Imagino que muitos que já tiveram de traduzir a palavra só se deram conta no final do texto de que a sua opção estava errada e tiveram de substituir todos os casos referentes a esse parente.
Obrigada pelo post. Gostaria de ler mais matérias sobre as marcas de gênero na tradução.
Relativamente à segunda parte do artigo, aquela em que o romance aponta para um futuro desconhecido, parece-me muito bem a exposição do Marco. Já no que diz respeito ao telefonema do Reino Unido para as condolências, não pode haver dúvidas na tradução: se é “the prime-minister” só há uma solução – o telefonema é feito por um homem ou por uma mulher?
O telefonema é recebido por um homem (o presidente dos EUA), mas o interlocutor nunca se vê e nunca se ouve e, por isso, não sabemos se é uma primeira-ministra ou um primeiro-ministro.
Um problema com que me confronto frequentemente (sou tradutor) diz respeito às línguas eslavas. Como a maioria delas não tem artigo, eu tenho de imaginar que artigo, definido ou indefinido, pôr na minha tradução, e muitas vezes os dois artigos são possíveis, mas com significados diferentes. Às vezes o contexto me dá subsídios para isso, mas às vezes não.
Exacto! É mais um dos casos em que o tradutor tem de fazer mais escolhas do que o autor.