Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Dizer «um sorriso nos lábios» será erro de português?

Bolas, que os inventores de erros não param! Ainda agora vi no Facebook uma imagem com uma lista de redundâncias erradas que uma empresa qualquer decidiu criar para me aborrecer o dia. Uma dessas redundâncias proibidas era «um sorriso nos lábios»… Porque, na lógica impecável e implacável de quem criou a imagem, um sorriso tem sempre de incluir os lábios — logo, a expressão está errada.

Ah, a redundância, esse papão dos alarmistas da língua. Não se pode ter redundâncias na língua: fazem mal!

E, no entanto, raramente fazem algum mal que se veja. Aliás, as línguas têm redundâncias que foram sendo criadas de forma natural para ajudar à comunicação e à expressividade — sem estas redundâncias, a comunicação só seria possível em situações em que não há ruído e todos nos entendemos perfeitamente — ou seja, situações muito raras e muito pouco humanas. De certa forma, uma língua sem redundâncias seria uma língua de robots.

Basta pensar que se eu digo «tu és linda» já estou a usar uma redundância porque, se a forma verbal é «és», o «tu» não está ali a fazer nada. Sim, a gramática do português até me permite omitir o «tu» — mas há casos em que a frase pede o pronome pessoal. Os anti-redundâncias acham que nunca devo usar o «tu» por ser redundante?

Ah, mas dizem-me agora: isso é um absurdo! Isso é ir contra o funcionamento da língua!

Exacto! A língua funciona com redundâncias: na gramática, no vocabulário e nas expressões que usamos todos os dias. A linguagem humana tem redundâncias a torto e a direito — como o nosso corpo e como, aliás, toda a natureza.

Querem mesmo evitar as tais redundâncias à força? Para quê? Não vamos ficar a falar de forma mais clara nem mais bonita. Antes pelo contrário.

Enfim, eu sei que não querem evitar todas as redundâncias. Só umas quantas, escolhidas assim à sorte. Mas para quê, pergunto eu? Só para terem o belo prazer de corrigir os outros?

Convençam-se: um português sem redundâncias é impossível — e muito feio. Aliás, se eu também odiasse as redundâncias, podia ter reduzido este texto a uma só frase: «As redundâncias não fazem mal.» Mas não era a mesma coisa, pois não?

Para verem onde quero chegar na prática, reparem que a tal lista de redundâncias que encontrei no Facebook incluía estas três expressões supostamente erradas (entre outras mais perigosas):

  • «sorriso nos lábios»
  • «elo de ligação»
  • «novo lançamento»

(Já agora, uma pergunta: se alguém fizer dois lançamentos dum livro em terras diferentes, o segundo lançamento não é novo?)

Enfim, se querem mesmo obrigar toda a gente a evitar «elo de ligação» e «novo lançamento», força nisso.

Agora, a redundância que gostava de continuar a usar, se me permitem, é essa do sorriso nos lábios.

Reparem nisto:

«Ela vinha a descer a rua com um sorriso nos lábios.»

Sim, sim, aquele «nos lábios» pode ser retirado e o significado é o mesmo:

«Ela vinha a descer a rua com um sorriso.»

Sim, porra: o significado é o mesmo — o sorriso é que não. E a própria rua fica bem menos alegre.

*

E assim andam algumas pessoas com uma caneta na mão a riscar a vermelho as palavras dos outros, mesmo quando essas palavras não fazem mal nenhum e são apenas uma forma um pouco mais expressiva — mais visual, mais clara! — de usar a língua.

Tremo ao pensar no que esta gente faria perante um poema. A poesia! Que coisa tão cheia de redundâncias, não é?

Enfim, para estes correctores compulsivos, o que se pode dizer em duas palavras nunca se deve dizer em três ou quatro. Isto da língua é uma coisa muito séria e muito espartana: é para usar no osso, sempre no mínimo, sem brincadeiras e — acima de tudo — sem palavras a mais.

Ora bolas. Deixem lá isso e ponham mas é um sorriso nesses lábios tão sérios.

Este texto foi publicado, numa versão revista, no livro
Dicionário de Erros Falsos e Mitos do Português.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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5 comentários
  • Além disso e como exemplo, o sorriso também pode ser visível só nos olhos ou nos lábios e nos olhos. Enfim, neste momento, estou a sorrir com os lábios e os olhos.

  • Sim, pois claro as redundâncias, as redundâncias!!!
    E como chamarão à frase “eu gosto muito de mim” !
    Uiii que arrepiu tiveram os senhores pescadores de novidades … Santo Deus, novidades, neologismos, eufemismos uii vá de retro Satanás, ainda por cima aquela frase além de redundante é narcisista, onde está, onde está o lápis azul que horror não é azul é vermelho!!!!
    A Língua Portuguesa sempre foi viva, por favor, não a queiram matar.
    E, já agora, “tu tens um sorriso lindo nos lábios” é uma frase que alude não só ao sorriso bonito como os lábios também são bonitos!!

  • Ainda bem que há redundâncias. Sem elas a língua ficava muito mais pobre, muito menos divertida, muito pouco saborosa. E se há coisa que eu gosto de dizer com um “sorriso nos lábios” é que vou “subir para cima do banco” e “descer para baixo” sem pressas.

  • Sim, que há quem sorria só com os olhos, quem sorria só com os lábios, cuidado a ter e quem sorria com ambos. O melhor sorriso.

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