Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Uma Aventura contra O Clube das Chaves

Hoje, peço-vos que me perdoem um ataque agudo de nostalgia: vou falar-vos das colecções de livros da minha infância. A primeira colecção que li foi, claro, Os Cinco. Falo deles noutro dia. Mas, agora, quero falar do grande confronto da literatura infanto-juvenil em Portugal (pelo menos, na minha cabeça): Uma Aventura contra O Clube das Chaves. 

Uma Aventura eram livros mais leves, um pouco estranhos na forma como aqueles miúdos nunca tinham namoradas, amores, desamores ou outros problemas desses — que, como todos sabemos, não são nada típicos das idades. Estou a ser injusto: os livros não podem ser tudo ao mesmo tempo e estes eram livros de aventura — como o título da colecção não se cansa de dizer, já vai para mais de 50 livros…

E acho que houve um olhar mais lascivo da Teresa para um rapazinho qualquer n’Uma Aventura em Paris. Acho.

Depois, a acusação de quem não percebe como funciona a ficção: como é que aqueles miúdos têm tantas férias, vão a tantos sítios, acontece-lhes tanta coisa? Se formos literais nas contagens, já devem ter tido umas boas 25 férias de Natal e já deviam ter acabado o doutoramento. Bem, a resposta é: isto são livros de ficção… Os miúdos são eternos! (O que deve ser aborrecido, e é por isso que precisam de tanta aventura.)

Gostei sempre muito de os ler — viajei a Paris, subi à Torre dos Clérigos, andei pelos moinhos de marés da margem sul, fiz tanta coisa pelas mãos destas gémeas, deste Pedro, deste Chico e deste João.

UMA AVENTURAAinda por cima, na altura em que comecei a ler estes livros, tinha duas grandes amigas (isto lá pelo ciclo preparatório) que eram gémeas e tinham nomes parecidos com as gémeas dos livros. Depois, tinha na minha turma outro par de gémeas, com outros nomes, mas fisicamente indistinguíveis das gémeas que apareciam na parte de trás dos livros: louras, com o cabelo exactamente assim. E havia as típicas discussões no meio de turmas de adolescentes. Portanto, quanto a enredos de faca e alguidar, tinha a minha turma, com as personagens lá inseridas. Para as aventuras, tinha os livros. E eu era, claro, o Pedro. Aliás, acho que sofria o síndroma “para-Pedro-só-me-falta-o-nome”, porque tanto Uma Aventura como o Clube das Chaves tinham Pedros assim a dar para o intelectual. Só me faltava o desenrascanço do Pedro de Uma Aventura e do Pedro de O Clube das Chaves — mas se calhar eu, enquanto personagem, fosse um pouco mais realista como representante dos Pedros deste país.

Muitos anos depois, entrei num elevador duma faculdade de Lisboa e quem tinha à frente? A ministra da Educação da altura. Mas não me lembrei que era a ministra da Educação, porque o que interessa isso quando se é uma das autoras dos livros da nossa infância?

CLUBE DAS CHAVES

O Clube das Chaves era uma colecção bem mais adulta, se quiserem. E mais real. Os miúdos cresciam. Tinham amores, andavam pelas ruas de Lisboa, zangavam-se, tinham opositores que não eram «maus» (eram o Vasco)… Houve um momento qualquer em que tinha uma verdadeira pancada por aquela trupe. Um dia estava a chegar a Lisboa, vindo do Algarve (estava de passagem, porque não vivia em Lisboa) e olhei para a cidade e pensei: «esta é a cidade destes livros» e nesse momento tornou-se, um pouco mais, a minha cidade — que já sabia ser, nessa altura, apesar de ainda não viver por cá. Lembro-me especialmente bem de ver o Pedro a descer uma rua perto do Aqueduto, de mãos dadas com a primeira namorada. Vivia aquilo como se fosse eu.

O Clube das Chaves não tem personagens tão conhecidas, se quiserem, mas dá-nos um sabor mais nítido do que é a literatura. Nunca mais me esqueci das chaves do avô Cosme…

Se um dia as personagens destes livros se encontrassem todos, é provável que as gémeas, o João, o Chico e o Pedro de Uma Aventura fossem famosos, mas O Clube das Chaves seríamos nós, anónimos lisboetas que gostam de sonhar com aventuras, mas têm os pés bem assentes na terra.

Bem, aquilo ainda não era a literatura que viria a provar mais tarde, mas era muito bom. Os primeiros livros para adultos? Não tenho a certeza absoluta, mas penso que foram três: Cem Anos de Solidão, A Queda dum Anjo e, um pouco mais tarde, Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde. Fica essa outra nostalgia para outro dia.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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3 comentários
  • Lembro-me de “devorar” os livros d’ Os Cinco. O que eu gostava e admirava aquele grupo e o cão. Fechava os olhos e vivia todas aquelas aventuras com eles. imaginava-me a correr pelos campos com eles, a esconder-me em faróis e a explorar passagens subterrâneas. Há também diversos livros que me marcaram na fase de pré-adolescência, um deles era “Isa, hospedeira do ar”. Uauuuhh, aquilo era tão interessante, ser hospedeira do ar e viajar todos os dias. Escusado será dizer que durante vários anos queria ser hospedeira do ar. :=

    • É verdade, era fácil fechar os olhos e viver aquelas aventuras! Por causa de Os Cinco, sonhava em ir para ilhas desertas ou ter um subterrâneo em casa.

  • Na minha infância havia a Enid Blyton com os livros «os cinco», eram giros sem duvida, mas não retratavam a nossa realidade a Portuguesa. Mais tarde (muito mais tarde) tive a oportunidade de comprar muitas Aventuras para a minha irmã (que nasceu quando eu tinha 21 anos), para o meu filho; porquê? cada um que lhes oferecia, eles devoravam era uma coisa que não conhecia; resolvi lê-los e realmente fiquei assombrada; passavam-se em Portugal, em sítios que se podiam visitar e quando o fizéssemos poderíamos pensar na Aventura que as gémeas e os restantes amigos sem esquecer os cães, tinham ali vivido! CERTO, certo é que criaram hábitos de leitura numa geração ou duas que ninguém tinha conseguido até aí no nosso pequeno País, pelo menos até à faculdade; mas uma vez adquirido, não se perde, é como andar de bicicleta. Sempre achei que as autoras eram pessoas espantosas com tanta imaginação e tendo tido com certeza que conhecer todos os sítios para tão bem os descrever! Bem hajam pelo tempo que deram da vossa vida aos nossos jovens, pela escrita e pelo vosso bendito trabalho!

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