Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Uma língua escondida por cima de Portugal

Quando andamos pela Europa, estamos habituados a que ninguém nos compreenda quando falamos português. Ora, há um povo que percebe o que dizemos, mas nós nem notamos…

Quando vamos à Galiza, nem sempre reparamos que, além do castelhano, há por lá outra língua. E, no entanto, essa língua está bem visível em muitos locais. Por exemplo, nas placas da estrada. Sempre com cuidado (não vá bater no carro da frente), repare na «Rede de Estradas do Estado» por cima da castelhana «Red de Carreteras del Estado».

Se não puder ir lá ver ao vivo, deixo aqui uma foto para ajudar (o nome da «autopista» está em castelhano, mas a indicação da rede está nas duas línguas):

Depois, os nomes das terras estão em galego. A população sempre usou estes nomes, mas, durante algum tempo, os nomes nas placas da estrada foram escritos em castelhano. Hoje, não é isso que acontece. Os topónimos galegos são escritos, oficialmente, em galego: «A Coruña», «A Guarda», «Ourense», entre tantos outros.

Continue pela estrada. Os cartazes publicitários estão, em muitos casos, em castelhano. Mas nem todos. Como distinguir as duas línguas? Bem, para um português, não é difícil: o galego está muito, mas muito próximo do português… Em vez de «aeropuerto», temos «aeroporto». Em vez de «leche», temos «leite». Se andar por uma loja galega, talvez encontre expressões como «Servizo ao Cliente» em vez de «Servicio al Cliente».

Em muitos casos, temos as duas línguas lado a lado. Se quiser sair de algum sítio, procure a «salida» — ou a «saída» (e note que a avenida é «do Camiño Francés» e não «del Camino Francés»…):

Na oralidade, há momentos em que as duas línguas se misturam na mesma frase. Há também muitas pessoas que falam castelhano no dia-a-dia, principalmente entre os mais jovens. E, no entanto, como quase todos os galegos conhecem o galego, compreendem com pouca dificuldade aquilo que um português diz. É por isso que digo: na Galiza, faça o esforço de não falar em castelhano — afinal, somos portugueses, os maiores especialistas ibéricos em não falar espanhol!

Já que podemos usar a nossa própria língua, proponho também: quando ouvir um galego a falar galego, oiça com atenção. É verdade que os sons são diferentes, há alguma dificuldade inicial… Mas, escondidos por baixo das vogais mais abertas, de consoantes que nos lembram o castelhano, de um ritmo diferente das frases, temos muitos dos nossos verbos, muita da nossa gramática. Temos também palavras bem populares, que saem da boca dos galegos sem dificuldade: «medrar», «auga», «xantar» — esta última palavra é o nosso «jantar», que o galego escreve com «x» e come por volta da hora do nosso almoço.

É verdade que, na escrita, há alguns elementos que estranhamos: os «x» onde nós usamos «j» ou «g», os «ñ» e os «ll» a aproximarem-se da ortografia castelhana, os «z» onde nós usamos o «ç». Esta é a ortografia oficial do galego, ensinada nas escolas, e as diferenças que tem em relação à nossa ortografia não impedem que um português leia um texto galego. No entanto, perante tanta proximidade entre galego e português, alguns galegos preferem usar uma ortografia mais próxima da portuguesa. São os reintegracionistas e escrevem as palavras assim: «jantar», «Corunha», «filho», «língua», «caminho»…

Donde vem esta proximidade entre galego e português? Quando D. Afonso Henriques criou o nosso reino, o que se falava nas ruas era já uma língua bem distante do latim e essa língua (a que ainda ninguém dera o nome de português) era falada tanto a norte como a sul do Minho — e assim continuou pelos séculos fora. Quando a capital se estabeleceu em Lisboa, o português-padrão afastou-se, gradualmente, dos usos galegos e nortenhos, mas a proximidade nunca desapareceu e é, ainda hoje, especialmente visível entre o que se fala na Galiza e o que se fala no Norte de Portugal.

A proximidade linguística tornou-se, isso sim, muito discreta: não só os galegos falam e usam muito castelhano, apesar da sobrevivência da sua língua na oralidade, como nós temos alguma dificuldade em distinguir o galego na fala, por termos hoje uma fonética muito diferente.

A fonética é diferente, mas as palavras são tão nossas que arrepiam… Encontrei este cartaz numa livraria galega — a frase galega aparece em primeiro lugar, traduzida por baixo em castelhano:

Nós diríamos «ler é crescer», mas a palavra «medrar» é também muito portuguesa — no galego, algumas das nossas palavras populares aparecem escarrapachadas em cartazes… Mas não são apenas as palavras populares: os galegos até se atrevem a usar a palavra «saudade»!

Esta pequena crónica é um convite para conversar e ler: afinal, conversar é muito bom — e ler é medrar. Sem ter de usar o famoso portunhol, podemos conversar com os galegos. Sem ter de aprender uma língua nova, podemos ler galego. A proximidade é inegável e as diferenças são deliciosas. Da próxima vez que for a Vigo, é verdade que ouvirá muito mais espanhol do que galego. Mas experimente falar em português: verá que quase todos nos entendem. Depois, entre numa livraria. Pegue num livro das estantes da literatura galega. Leia um ou dois parágrafos. Irá descobrir que tem uma literatura inteira ao seu dispor, no original. Continue a viagem: procure uma aldeia galega. Converse com quem lá anda. Terá uma grande surpresa! É até possível que alguém lhe diga, ao despedir-se, neste mês de Dezembro, uma frase galega: «Boas Festas!»

(Crónica publicada no Sapo 24. Sobre o tema, escrevi o livro O Galego e o Português São a Mesma Língua?, na Através Editora.)

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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9 comentários
  • Por estas e por outras o b de vaca está correto e não é defeito do Norte. Assim como está correto o balcom e a oraçom. Por isso defendo a dupla grafia. Também o falar cherrano não é erro, é outro galaicismo. A minha avó cantava cantos que mais tarde descobri serem galegos, entre eles O Cego Andante. Também a poetisa Rosália de Castro, com estátua no Porto, é a autora do poema adaptado por Manuel Alegre e cantado por Adriano Correia de Oliveira: Cantar de Emigração. A Galiza e o Norte do Douro (segundo alguns, do Mondego) eram uma província romana com capital em Braccara Augusta e são, para todos os efeitos, um mesmo povo.

  • Olá, professor Marcos!!
    Sou brasileiro e estive em Portugal e em Santiago de Compostela no mês passado e tive a grata surpresa de conseguir me expressar em nossa língua com alguns galegos, apesar de um estranhamento na fonética. No entanto, tive que escultar um galego, apaixonado por sua terra, repetir – com uma certa empáfia – que quem deu origem a nossa língua foram eles. Não tive argumentos pra contraditá-lo, pois, nas minhas prefigurações, achava que a fronteira geográfica era que tinha moldado a língua galega e não que o galego tivesse influenciado o português.
    Pra terminar digo-lhe que Portugal é um lugar maravilhoso.

    • O condado Portucalense pertencia ao reino da Galicia, que passou a pertencer à coroa de Leão. Por isso não será errado te todo dizer que o português vem do galego. Talvez seja mais correcto dizer que tanto o português como o galego, derivam da mesma língua que se falava na Galicia.

  • Não podendo assistir às suas conferências, conto ler o livro “O galego e o português são a mesma língua?”. Dado que eu passei alguns anos em Ourense, vou partilhar aqui algumas impressões dessa vivência, a propósito do presente artigo e daqueloutro de 25/11/2017 (republicado em 12/11/2018) sobre o mesmo tema e com o título do livro. Espero que sirvam de alguma coisa a quem, porventura, conheça mal a realidade da língua galega na Galiza.

    A norma da língua galega (definida pela Real Academia Galega) tem suscitado apreensões entre os falantes comuns e disputa entre os eruditos, com uma minoria destes a reclamar uma maior proximidade ao português [conforme explicou o Marco no seu artigo anterior que referi acima]. A fixação de qualquer língua é sempre discutível e forçada; basta pensar que no tempo de Victor Hugo a França contava com centenas de dialectos. Suponho que terá sido menos difícil conciliar as variantes do galego que coexistem na tradição oral, mais as que perduram na tradição escrita. Todas serão, cada uma a seu modo, autênticas, mas nem todas podem sobreviver à marcha do tempo.

    Nos meios intelectuais e artísticos da Galiza, a língua galega (seja ela ‘correcta’ ou vernacular) é acarinhada e cultivada. Os funcionários e os médicos usam indiscriminadamente o galego e o espanhol, dependendo do interlocutor (se este for cliente, é mais provável falarem castelhano). No entanto, o galego ainda é encarado por uma camada snob da população como uma língua de segunda linha, oriunda das aldeias (“pueblos”/”aldeas”, em castelhano/galego) e própria dos camponeses e pescadores. Convém lembrar que a língua galega já era denegrida pelas elites sociais antes de ser proibida pelo Franquismo. É bom constatar que muitos “mozos e mozas” das grandes cidades (Ourense, Santiago, etc, à exepção de Vigo) se exprimem nos dias de hoje em galego – ainda que misturando abundantemente o galego e o castelhano, prejudicando, sem querer, o próprio galego! Naturalmente, há quem, mesmo tendo raízes na Galiza, fale apenas castelhano. A ‘língua materna’ é herança familiar, mas é também um produto de aculturação: fala-se como se aprendeu em casa, e não necessáriamente como os avós.

    A convivência das duas línguas oficiais é admirável, embora não totalmente pacífica. É certo que o governo (Xunta de Galicia) e o parlamento garantem uma Galiza bilingue – desde a sinalética das ruas e edifícios até aos documentos oficiais, tudo aparece escrito em duplicado – conquanto o galego vingue na oratória política e vigore nas cerimónias públicas. Os meios de comunicação social da Galiza contribuem para difundir o galego (a meias com o castelhano no que toca aos jornais, claro). Porém, o uso de ambos os idiomas nas escolas públicas está longe de ser consensual entre os pais, já que o idioma galego não tem valor no mercado de trabalho fora da Galiza. Em prol da preservação da identidade linguística, as directivas legislativas reclamam que 50% dos materiais escolares sejam produzidos em galego (com excepção das ciências naturais, salvo erro) – o que na realidade creio que nunca foi cumprido. Por lei, nas escolas primárias dá-se preferência à língua materna maioritária entre os alunos. Nas universidades, o galego é a língua da praxe académica, enquanto as aulas são esmagadoramente dadas em castelhano. A legislação recente que exige o domínio do galego para se concorrer aos postos da administração pública veio aumentar a controvérsia.

    Descobri um interesse da parte de espanhóis galego-falantes pela língua portuguesa que não vejo ser correspondido pelos portugueses. Nos cafés de Ourense cruzei-me com pessoas que admiravam Saramago, Pessoa e até Camões. Reparei que percebiam a custo o que eu dizia ao falar-lhes chãmente em português, talvez devido às diferenças (enormes) de entoação, muito mais do que às (modestas) diferenças lexicais. Nas lojas ou quando pedimos uma informação na rua, arricamo-nos a ouvir um límpido e desanimador “Como?”. Em suma: a fala portuguesa é recebida na Galiza com simpatia; contudo, se estivermos longe das localidades raianas, faz-nos sentir estrangeiros (tirando, enfim, os galegos habituados a Portugal e aqueles nichos de cultura que são certas livrarias). Resta-nos o castelhano, que funciona como língua franca na Galiza. Quiçá não tentei o suficiente para ter a surpresa referida pelo Marco Neves!

    Embora eu entenda o galego corrente na perfeição, tal como o mais antigo da Rosália de Castro, desgraçadamente não sei nem almejo saber falá-lo em condições, e ainda menos escrevê-lo. As parecenças do galego comum com o português e o castelhano são profusas e confusas. De resto, aos meus ouvidos e não obstante as variantes regionais, o galego soa-me familiarmente bem por fazer lembrar a poesia medieval galego-portuguesa – de que já só se lêem raros excertos no Ensino Secundário actual. Fosse esta afincadamente lida e talvez a formosa língua dos galegos deixasse de parecer estranha aos portugueses…

    • Muito obrigado pelo excelente (e muito completo) comentário! Posso publicá-lo como artigo principal? Quanto à surpresa, de facto consegui (nesta última viagem) falar em português com vários galegos em lojas e no hotel, implicando apenas não falar muito depressa. Mas também já me aconteceu o que diz: receber um “como?”. O que fiz numa grande parte das vezes foi tentar repetir, por outras palavras, evitando o castelhano, e quase sempre consegui continuar a conversa, com toda a simpatia do outro lado. Mas, claro, tudo isto depende muito da cidade e, às vezes, da rua em que se está, presumo. (Há vários anos que não vou a Vigo, por exemplo…) Muito obrigado, uma vez mais!

      • Por desgraza en Vigo (eu son de Vigo) é frecuente que ante unha pregunta en portugués o nativo resposte en castelán, pero tamén é frecuente en Portugal que a un galego falante o portugués tente responderlle en castelán. A dificultade dun galego falante para entender o portugués na fala parte exclusivamente das diferencias fonéticas, máis afacernos énos relativamente sinxelo e si o noso interlocutor non fala excesivamente rápido o éxito no comunicación é seguro.
        Parabens polo artigo Marcos Neves, moitos galegos ansiamos reencontrarnos con Portugal.

  • Concordo em geral com tudo quanto leio aqui. Quero, no entanto, contar um episódio ocorrido em Vigo nos finais de Setembro de 1976, regressando eu com duas amigas de um Inter-rail na Europa, inclusive para lá da Cortina de Ferro (Jugoslávia, Hungria, Checoslováquia). Parámos em Vigo, visitámos a cidade e entrámos numa livraria e outros artigos. Fizemos algumas (parcas) compras, e falávamos entre nós normalmente, dirigindo-nos à caixa para pagar, onde uma senhora perto da meia idade atendia clientes. Quando a abordámos, continuando sempre a falar isto e aquilo, a senhora muito risonha olhava para nós e dizia, inquirindo: “Tchecas, tchecas?” Nós olhávamos para o que tínhamos nas mãos e não percebíamos o que seria “tchecas”: tínhamos chocolates, alguns outros artigos, mas não imaginávamos o que poderia chamar-se “tchecas”. Olhávamos para as nossas mãos e fazíamos uma mímica de dúvida, que “tchecas” teríamos que pagar…? Até que ela apontou para nós e insistiu: “Tchecas? Tchecoslováquia?” E aí surgiu-me a dúvida (remota): apontei para o meu peito e para as outras e perguntei: “Nós, da Checoslováquia!!!?” E a senhora, risonha, satisfeita acenava que sim, olhos bem abertos, expectantes, e, nós, olhando nos abismadas, hilariantes, explodíamos de riso às lágrimas. Só muito mais tarde e, ainda no tempo do Muro, vim a entender o equívoco – justificado – quando tive a ocasião de visitar, em viagens de estudo, (era bolseira na então República Federal Alemã) vários países eslavos e onde, de facto, a sonoridade da(s) língua(s) se aproximam tanto da nossa: Consideremos, p.ex: faísca, farrusco, FranciscoJosé (fsqjz), junto com as nossas muitas átonas… Por vezes, em alguns locais, outras excursões de grandes grupos estavam relativamente perto para ouvir a sonoridade da língua, ainda antes de perceber as palavras e lembro-me de me aproximar para ver se eram portugueses ou não. E, sim, os sons aproximavam-se dos nossos, só que eu não entendia nada… O espanto foi que na Galiza nos supusessem checas…

  • Parabéns pelos seus artigos. Continue, mesmo que tenha de lugar contra a falta de tempo (o que certamente lhe deve acontecer muitas vezes). Um conselho que dou aos meus amigos que visitam a Galiza é: “fala-lhes em Português com sotaque espanhol e tens o problema resolvido.” É a receita que aplico quando vou à Galiza (embora há anos que não ponho lá os pés) e tem dado bons resultados. Para além de algumas palavras menos usuais (sem falar na grafia: xunta por junta, etc.), a grande diferença que encontro entre o galego e o português é que o galego é um português falado à espanhola e o português é um galego falado à eslava (muitos xx e muitos jj e muitas vogais fechadas: xprient por experiente).

  • Sendo eu alfacinhade gema, os meus pais e avós nasceram no concelho de Arouca e noto que muitas palavras que ouvia na minha infância, nas férias, são iguais ao galego. Agora compreendo porque é que “água” era “auga” – achava eu que era ignorância do povo simples, só não percebia que a ignorância era unicamente minha…

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